O Sacrifício do Cervo Sagrado
O prato frio da vingança
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2017
Em “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, seu diretor grego Yorgos Lanthimos repete a estranheza de seu filme anterior “O Lagosta”, só que desta vez, conduz pela narrativa linear e de suspende psicológico, utilizando-se de cruas inserções sensoriais de instrumentos instintivos, catárticos e secos da erudição da música clássica sacra, uma tradição religiosa judaico-cristã, que passa pelos períodos do Renascimento, Barroco, Classicismo, Romantismo e Modernismo, cujas fases estão trabalhadas cirurgicamente aqui. No longa-metragem, o espectador é convidado a montar o quebra-cabeças de uma trama obsessiva, psicótica e sistematicamente vingativa. Critica-se a humanidade e seus vazios egocêntricos, mas respeita sua intrínseca morbidade latente e pululante que em qualquer momento pode ser despertada como um dragão raivoso.
Lanthimos apresenta um controle absoluto da direção, que inicia suas imagens com a observação visceral de um coração em close, aberto e pronto para uma cirurgia. “O Sacrifício do Cervo Sagrado” assemelha-se aos atos “motetes”, que são peças baseadas em textos religiosos, divididos em seis partes básicas (Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei) e o réquiem, ou missa dos mortos, que inclui as partes básicas da missa e mais outras (Dies Irae, Confutatis, Lacrimosa). O diretor escalou o designer de som Johnnie Burn (que trabalhou cm Jonathan Glazer em “Sob a Pele”).
Sua fotografia, ora em câmera lenta, ora por olho mágico, ora com suas aproximações, ora Travellings, ora afastamentos, ora acompanhamentos, e em todos a sensação de tempo pausado, representa a construção degenerativa de uma epifania confrontada com o realismo da psicopatia. É um filme de momentos fragmentados, de conversas banais sobre relógios e pacientes, de perigo iminente, de terrorismo mental, que destitui as faculdades cerebrais.
Como já foi dito, busca-se a sinestesia a fim de nos unir, de maneira cúmplice, à história. A festa do trabalho, a fantasia sexual cadavérica (a filia figurativa da morte). Sim, sua atmosfera abraça o “noir” moderno, inferindo à cinematografia do diretor David Lynch e seus passeios-sonhos, este que este ano apresenta, aqui em Cannes, uma nova temporada de “Twin Peaks”, a “O Iluminado”, de Stanley Kubrick, e também a “Carrie, A Estranha”, de Brian De Palma. A narrativa pauta-se por relações sociais, propositalmente, como objetivo, superficiais, robóticas, práticas, objetivas, como se fossem saídas de uma Anamnese, um procedimento-entrevista realizado, preliminarmente, pelo médico a seu paciente a fim de diagnosticar uma doença durante a consulta.
“O Sacrifício do Cervo Sagrado”, que busca referência em “Iphigenia in Aulis”, de Euripides (história que dramatiza o dilema de Agamemnon quando sua ofensa a Artemis, a deusa da caça, levou-a a exigir que ele sacrificasse sua filha mais velha), nos conta que Steve (o ator Colin Farrel – que faz dobradinha em Cannes ao participar de dois filmes da competição oficial – o outro é “The Beguiled”), um carismático cirurgião, encontra um adolescente, que perdeu o pai e que por isso procura integrá-lo em sua família livre, disfuncional e psico-desordenada, que o analisa pelo naturalismo parecidos com técnicas entrevistas jornalísticas. Quando as ações do garoto se tornam cada vez mais sinistras, a vida ideal de Steven começa a desmoronar e ele é forçado a realizar um impensável sacrifício.
“O Sacrifício do Cervo Sagrado” aumenta-se a aura de mistério sensitivo por ângulos não convencionais. Quando o surrealismo atinge o horror cerebral, então a inexplicabilidade é perturbada, desencadeando impaciências no pai, histerias na mãe e segredos compartilhados com o intuito de enganar a maldade sobrenatural que mora no subconsciente. Nada mais assustador. “Ouvir qualquer tipo de música depende do humor”, diz-se, como o pop atual comercial.
O filme, entre a espontaneidade de se passar fio dental quando o casal se prepara para dormir; exercícios vocais da filha; a exibição do filme favorito “O Feitiço do Tempo”, de Harold Ramis, pulula sintomas do mal maior: da vingança projetada, servida fria. “Tenho mais cabelos no corpo porque sou mais velho”, indica sutis tensões sexuais orgânicas sem preconceitos, tabus, amoralidade e limitações. Mais uma vez, a plena existência profissional do autoritário médico que “dá a permissão” ao filho, como um coronel. Mas seu controle é destituído como uma “falha no sistema”, um “vírus”, lindando com “vencedores e perdedores em um ônibus”.
As “vítimas”, “possuídas”, não comem, não andam, apenas vegetam, aceleram distúrbios psicológicos e recebem “ordens”. É o projeto rápido de uma vida para conseguir o “mais próximo da justiça”. O filme, que tem um elenco entrosado, químico e físico, conjuga competência com inteligência: a direta Nicole Kidman, o altivo Colin Farrello, o contido-cruel Barry Keoghan; a mãe sexual Alicia Silverstone, e as crianças Sunny Suljic e Raffey Cassidy.
“O Sacrifício do Cervo Sagrado” é sobre a naturalidade da morte, em lidar com inocência enraizada a “herança do MP3”, sobre a metáfora do beijo no pé e do chorar sangue. A família passa a ser servir, submissos, lógicos e necessitados para que os filhos sejam curados das enfermidades. A roleta russa assassina escolhe a brutalidade do momento para conseguir a paz no futuro e o “catchup”. É insano, mortal e excessivamente perturbador, porque desconstrói a ética em nossa contemporaneidade perdida. Enquanto a crítica é realizada, o álbum sempre busca a atmosfera do filme referenciado. Nesta “Agnus Dei – Sacred Choral Music: The Choir of New College, Oxford”. O diretor Yorgos Lanthimos (ιώργος Λάνθιμος) tem 43 anos e nasceu em Atenas, 27 de maio de 1973.