Talvez uma propaganda
Por Gabriel Silveira
“Talvez uma história de amor” é um sintoma da decadência do espírito do cinema brasileiro dotado de uma síntese-espelho de um discurso inacreditavelmente covarde a propósito do medo e do reacionarismo paranoico das elites domésticas contemporâneas. O projeto é uma protótipo de comédia romântica indie norte americana — que remete aos chavões de convenções cômicas de uma vereda nostálgica aos anos 2000 que embasam sua impotente saudade por “tempos mais simples, onde haviam menos pessoas de cor na tv”; como no elenco desta obra — filmada com uma equipe brasileira por um diretor brasileiro no Brasil. Curioso como numa composição dessas o artifício mais brasileiro com qual me deparei foi Tudo o que ela gosta de escutar do Charlie Brown Jr.
O drama desenvolve a história de Virgílio (o ator Mateus Solano), um publicitário que aparentemente acordou para o dia em que escutara em sua secretária eletrônica a despedida de uma mulher que sente pelo término do namoro dos dois, o problema, é que Virgílio não tem memória alguma desta pessoa. Este decide então correr atrás de explicações para o caso. O paralelo traçado entre o ofício da personagem e o discurso chave do filme toma luz logo em sua primeira sequência. Nesta, inúmeras cenas de abraços e encontros em aeroportos são jogadas na tela acompanhadas pela voz off de Virgílio que discursa sobre o “talvez”, dando, então, nesta justaposição, uma tonalidade perfeita àquela mise-en-scene que, caso fosse lida em um outro cenário, à deriva numa televisão durante o horário de almoço, seria possível afirmar, com certeza absoluta, que tratava-se de uma campanha publicitária de uma companhia aérea que procurava vender um humanitário impasse entre o distanciamento e a saudade; que você pode experienciar comprando uma passagem para outro continente com cinquenta por cento de desconto no site da agência.
Daí, a trama segue levando a personagem a seu tentativa de busca e re-descoberta desta história de amor nunca vivenciada. Sua memória é posta em cheque na tentativa de investigar, paranoicamente, a voz dessa mulher questionando seu próprio passado a seus amigos e colegas, e no crescendo da interação deste para com as outras personagens exalta-se a construção da plasticidade das relações humanas “apolitizadas” e polidas como se fossem arquétipos em construção de um sitcom da tv aberta norte americana. Virgílio é um homem atormentado pela sua obsessão por uma ilusão de estabilidade absoluta em sua vida, onde a meticulosidade de seu suspeitoso TOC vai além de metodologias compulsivas de organização, até, a recusa de uma digna promoção, já que mais dinheiro em sua vida não o ajudaria, já que tudo está nos conformes ideias em sua vida materialista. Estas personagens dispostas a ajudar a protagonista em sua jornada parecem ser dirigidas em suas performances de uma maneira que funcionaria perfeitamente para a personagem-síntese de Virgílio, numa polidez ao que parece uma fidelidade absoluta ao texto literário, de uma norma culta/televisiva que faria sentido no espírito caricata na personagem de Solano, mas, essa esterilização da fala daqueles que tangenciam o enredo apenas parece concretizar a aura flácida do ciclo social daquele que mais parece uma grande alegoria à fachadas burguesas.
Na São Paulo inexistente de Talvez uma história de amor, onde tomadas aéreas azimutais parecem ter sido entupidas (em pós produção) de taxis amarelos numa sequência arranha-céus que não aparentam uma estética lá muito paulista, onde o cachorro da vizinha só para de latir quando alguém reproduz New York, New York de Sinatra e os interiores e exteriores de suas paredes não ostentam de nenhum traço latino que não seja a própria língua e arquitetura — já que o referencial cultural midiático é quase que exclusivamente norte americano (dá-lhe o insert de filme novaiorquino dos anos 1990 de Tom Hanks como síntese do vergalhão referencial da obra) — Virgílio descobre que sua amada, curiosamente, partiu para Nova Iorque. Este decide partir para a cidade a procura de seu amor, já que no Brasil toda a sua estabilidade como ser social foi corroida pela ausência daquela, que encontra-se agora, única e exclusivamente, em Nova Iorque, por tempo indeterminado. Nos EUA a protagonista consegue alcançar seus objetivos com a ajuda de sua influência dentro do mercado brasileiro. Retoma, então, sua estabilidade e dignidade na paz e conforto de sua cidade nova, a mesma cidade das tomadas aéreas azimutais regadas de taxis amarelos utilizadas para decupar São Paulo, a mesma tomada. Talvez uma história de amor é uma ode ao auto-exílio das elites domésticas brasileiras que renunciam e negligenciam seu próprio chão. Uma imensa campanha publicitária de uma hora e meia de duração que enfia um cartão postal de Nova Iorque na goela do espectador médio brasileiro. Curioso, ou, compreensível o interesse da Warner Bros. em distribuí-lo.