A censura do corpo
Por Gabriel Silveira
Em “Sol da Meia-Noite”, Scott Speer tentar estabelecer um retrato, a priori, singelo do pesadelo de uma vítima de Xeroderma Pigmentosum, ou como o suas personagens gostam de abreviar, XP, uma desordem genética de reparação do DNA/ADN onde o organismo é incapaz de reparar os danos causados pela radiação UV. Assim como a pronúncia do nome completo da doença pode soar um pouco agressivo, as dores em si da experiência são um massacre espiritual a parte, desde a menor exposição ao sol o corpo torna-se sujeito a queimaduras solares severas na primeira exposição solar de um recém nascido que, caso o corpo esteja sujeito à outras exposições no decorrer da vida, o mesmo acaba fadado a fatais degenerações como ulcerações corneanas, bolhas de queimaduras às menores exposições e um enorme leque de danos a pele que resultam nos mais agressivos e fatais cânceres. Sendo uma condição raríssima, a pesquisa contemporânea não obteve recursos ou resultados que pudessem somar na luta de tais vítimas, estas encontram-se fadadas a viver uma reclusa vida de fuga, onde há apenas a luz do luar.
A malha dramática construída por Scott Speer pinta uma composição da face severamente danificada pelos horrores desta doença como um, maravilhosamente maquiado, rosto de bebê de uma top model, no caso, literalmente, de uma ex-estrela mirim da Disney. A protagonista Katie (Bella Thorne) vive em uma redoma de filme de controle solar criada por seu pai (Rob Riggle). Nesta polida bolha noturna, Speer dá luz a uma polÍtica de censura estética de seu próprio objeto, a personagem de Thorne é composta como uma adolescente média americana dotada da mais clara pele maquiada que uma câmera poderia capturar. E é com base nesta censura que o diretor tenta construir um inofensivo drama romântico adolescente, à moda de A culpa é das estrelas, travestido de campanha de arrecadação de fundos de uma organização médica combatente.
E num discurso de “querer viver como alguém além de uma doença”, Speer acaba compondo um campo onde Katie explora os maiores pontos de referências dos cânones folclóricos do coming of age de um ensino médio hollywoodiano que é filmado como um vídeo clipe encomendado por uma rádio Top 40 que quer entrar no contato mais íntimo que conseguirem com a possível audiência daquela geração que vem depois dos millennials. O senso de espaço estabelecido no uso brilhantino dos flares anamórficos é distante e artificial quando trata de estabelecer a presença destes corpos que gritam pelo contato. Ainda mais o de Katie, que quando finalmente quebra o ciclo de sua vida de reclusão, ao começar uma relação com o rapaz que amou distante e platonicamente através da janela de sua infância, é, ainda, articulada como a mesma menina doce de pele saudável.
O tom inofensivo e ingênuo da disposição das experiências de Katie acabam gerando momentos de positivas cadências cômicas que, infelizmente, soam defasadas, na maior parte do tempo, por serem sufocadas pela ausência de qualquer malogro espiritual destes infortúnios que somente são o que são pela ocorrência da morte, que ela mesma, por fim é expressada como um evento curado a base de sorrisos e canções.
A produção do produto audiovisual seguro é norma e necessária, mas vender esse discurso de ilusões que privam o leitor do contato para com o próprio objeto o qual o filme aclama ser cerne de si, simplesmente, soa como uma passada de perna, uma fachada. Nessa covardia dos que temem perder minúsculas porcentagens de suas previsões de audiências quando encontram-se de frente com a oportunidade de apostar alto, de arriscar, tais produtores acabam criando um feto moribundo de um projeto que antes projetava-se como uma obra capaz de entrar em contato com o humano. Cria-se, apenas, um poster de um drama juvenil incapacitado. Que não sabe o que é sentir. Que não sabe o que é tocar pela primeira vez, beijar, gozar, amar, perder. Que não transpira, respira, sofre ou morre. Que não vê e não escuta nem, ao menos, a seu passado. Parecendo querer mais impedir que outros vivam o presente livres das rédeas das ilusões das idealizações de sua estéril ganância.