Se a Rua Beale Falasse
Saudades dessa saudade
Por Gabriel Silveira
Durante o Festival do Rio 2018
Desde “Moonlight – Sob a Luz do Olhar” já se podia ver que Barry Jenkins teria que nascer novamente para decepcionar ou produzir alguma monstruosidade. Todo o discurso alto astral do cara, sua humildade e paixão expressa por seu repertório refletiram muito bem no longa de estréia.
Em “Se a Rua Beale Falasse” o homem vem novamente fazer mais um gol de fora da área, desta vez não foi de bicicleta, mas ainda sim com muita maestria. A narrativa de Baldwin respira no filme de Jenkins com um formalismo cênico tão conciso e romântico que é mais que digno daquele discurso do material de origem. Mesclando toda a paixão que traz de suas referências proclamadas em cima da tragédia do casal, como em todas as sequências onde o motivo musical principal roubava a cena ao lado daquela diegese magnífica regida pela ternura da mise-en-scene, se fazia em mim a vontade querer largar tudo e viver naquele melancólico e charmoso universo… ao mesmo tempo que não.
A obra procura estabelecer uma estrutura ambiciosa dentro do drama com toda a construção das tramas externas que regem o conflito central da prisão de Fonny (Stephan James). Nisso, ainda há um paralelismo fortíssimo que brilha, com ainda mais intensidade, nos esforços das lutas mais intimistas que o casal — e principalmente o protagonismo de Tish (Kiki Layne) — executa dentro do status-quo do racismo estrutural norte-americano. É curioso como essas duas vertentes da estrutura narrativa desaguam na efetivação de dois golpes diferentes de cada eixo do discurso sob o mesmo regime de encenação e similitude de atmosfera diegética.
O modo como Jenkins absorve e fundamenta tantos tropos midiáticos da cultura popular negra norte-americana setentista dentro do universo daquela rua — a rua como sendo o chão comum de encontro e congregação das narrativas compartilhadas por aquela comunidade nacional — gera um fuzuê frenético, entorpecedor, na tentativa de compreensão de todos aqueles objetos reconfortantes que constroem a encenação. Entorpecendo na base da suavidade, como se tudo ali fosse regido pelos compassos pacientes de “Are you leaving me” de Aretha Franklin e sua melodia que esguela e clama por um desespero que não cessa de afogar-se num poço sem fundo de esperança quando se encontra livre para cochichar no breve momento de paz da intimidade: contigo, everything is like heaven. O que a plasticidade daqueles sets que, mesmo quando se montando com todas as luzes de preenchimento, se faz como se estivesse sempre iluminado por uma meia luz que somada a todos os tons quentes, amarelos e marrons criam esse espaço de segurança, que mesmo que efêmero, instável, alvo, faz com que o senso de fé e confiança se levante para lutar mais uma vez.
O que é extraordinário quando, dentro da narrativa de “Se a Rua Beale Falasse”, se faça efetivar a vontade dos poderes regentes de destruir aqueles espíritos, e essa destruição se realiza implodindo parte daqueles que se amam, no intuito de retroalimentar a desilusão para que ela se faça norma, dando abertura para que a única possibilidade nessa desilusão infinita se torne a fé no amor que não abre mão hora alguma.
Os elos que Trish consegue manter vivos são a síntese desse amor, todos os membros de sua família que mantém-se sempre em um teto moral que viabiliza o sacrifício e a coragem coletiva em nome da fé em seus parentes, diferentemente da própria mãe corrompida de Fonny que se aclama como a maior vítima da traição de si mesma e todos os seus, que quase se faz uma Mayotte Capécia, que diferente da explanação de Fanon, aqui se fazem todas as falas anêmicas que devem ser ofuscadas para que se encontre o caminho honesto que leva ao coração (Fanon).
Ainda que com seus devidos maneirismos que explicitam demais as influências desse diretor que não cansa de falar de Wong Kar Wai e a trilha musical de “Chunking Express” e “In the mood for love” (que se fazem presentes na configuração de nosso filme), “Se a Rua Beale Falasse” só vem para provar que Jenkins vai muito além de um artista competente que sabe recortar suas políticas dentro de cartilhas estéticas e formais enaltecidas por europeus, o homem se mostra um verdadeiro autor hollywoodiano, um qual espero que entre para o cânone de tal história e que não haja quem o venha tirar de lá.