Limites e Limites
Por Gabriel Silveira
Direto da Mostra de Cinema de Ouro Preto 2018
Acho que o maior problema de “Quebranto”, de José Sette, se encontra em sua vontade de cobrir o que parece, aprioristicamente, fora de seu alcance. A começar pelos títulos iniciais, o filme parte do pressuposto de que as obras de Shakespeare, Oswald de Andrade e James Joyce são os principais catalisadores de seu argumento. Daí, aquele vem de engate com a fragmentação canhestra desta trama que é tomada pelo pivot das paixões do Poeta (com P maiúsculo) que, acompanhado por uma trupe de personagens-alegorias que vivem numa eterna e anárquica modulação de sua condição como dramatis personae — entre personificações dos resultados das influências de certas doxas que funcionam como embasamento de certas ideologias da protagonista e arquétipos que esforçam-se brutalmente na procura de certa individualização entre os intervalos de suas quedas numa representação de um coro clássico que, tomado por um twist de uma vulgaridade modernista, relata os conflitos internos das plurais facetas e personas do grande Poeta perante sua nova obsessão por uma musa que é construída através de uma exposição sexual de gosto duvidoso.
O que sinto que pode ser derivado de Joyce, como alicerce, para o espírito do discurso da trama é o que há de inconsequente na quase malandragem que, de certa maneira, beira uma decadência; a qual Quebranto não consegue executar com um décimo do fluxo da cadência joyciana. O projeto acaba sobrando por si só num canto, sugando a decadência sintetizada pela faceta de um wannabe bon vivant dos anos 20. O wannabe, no caso, como o próprio poeta que parece mais ser interpretado com o descaso de um intérprete que decidiu decorar suas falas em seu horário de almoço, duas horas antes do início das diárias. Este close-up de tal espírito decadente poderia, até mesmo que sem querer, acabar resultando em um ensaio sincero da desconexão desta persona vive numa dimensão temporal de uma fantástica nostalgia, mas tudo na projeção de cada monólogo do protagonista soa falso e desconfortável para com sua própria posição, como se não levasse nem a si mesmo a sério.
Soa como se a única coisa que consciência da personagem anseia — que por consequência permeia cada quadro de cada plano e cada expressão sonora do filme — é a satisfação de de sua libido em sua caça por sua nova musa. Oriunda de encontros/assédios rotineiros, a obsessão resulta numa entrega da musa que não consegue resistir os contatos invasivos e a (literal) perseguição executada pelo poeta. Ela se entrega aos charmes grotescos do homem (como uma concretização da moral libidinosa da doxa machista), apesar de ser comprometida, o que ativa um curto circuito nas complexidades e inseguranças misóginas da protagonista; o incontrolável desejo que anseia pela violação da honra do sujeito derrotado e o embate com a vergonha de si por não ter aquela mulher para si, por completa, sob toda força do punho que puxa as rédeas que cerram o pescoço dominado.
Como explanado acima, o descaso para com a imagem feminina acaba permeando a forma do filme ao lado da decadência que é carro chefe. A própria encenação falhou para com o discurso do poeta. Os corpos são disposto com uma indiferença que remete senso de composição e espaço do fotógrafo médio contemporâneo, aquele que tem uma grande angular arrebatadora em seu bolso e trata de seu objeto como uma fotocopiadora trata uma página a ser escaneada.
Acredito que não trataria do filme com o desgosto que trato neste momento se não fosse por uma razão específica. Desde o início esforcei-me na tentativa de me entregar ao discurso vendido. Me diverti com certas trucagens cênicas e a ambientação dos primeiros vinte minutos onde ainda havia espaço para resoluções ou mesmo concretizações/validações da anarquia dramática. Mas, a partir do momento em que a musa objeto passa a, não somente ser fotografa com a repugnância da fetichização/exposição gratuita de sua nudez, mas entrega-se por completo a um suicídio resultado da rejeição do Poeta (que não aguentava o fato de não ter sido o primeiro amor da vida da moça), fica impossível de ler qualquer outra sentença de seu discurso. Compreende-se que cada obra pode ser fruto da consciência de tempos que não passam dentro do sonhar de obras/autores, mas, feminicídio indireto não dá comprar. (Caso tudo, no fim, venha a ser uma piada obscura distante dos limites de minha compreensão, estou a disposição do diálogo.)
1 Comentário para "Crítica: Quebranto"
Como diria Rogério Sganzerla, o crítico não entrou e não entendeu o espírito do filme, mas o que eu posso fazer, se não, como Joyce, esperar mais uns 100 anos, ai, talvez possa ser apreciado…