O desespero latino
Por Vitor Velloso
Fui assistir a “Quando as Montanhas Tremem” sem saber nada sobre o filme, além do nome dos diretores. O filme começou e a proposta fílmica foi lançada, eles iam criar uma montagem de conflito através de uma entrevista com uma mulher e dos acontecimentos filmados por eles. O filme não é sobre a guerra na Guatemala, sobre o genocídio desenfreado ou sobre o subdesenvolvimento. É um filme sobre um povo que resiste a estes fatores sociais, o povo latino-americano. O filme possui muitas relações com o processo histórico brasileiro, em todos os aspectos socioeconômicos e políticos. Lembro-me de um filme nacional de 2016, “Então Morri” da Bia Lessa e do Dany Roland, que desenvolve um pensamento sobre a complexidade social do subdesenvolvimento através de uma personagem específica fazendo uma regressão temporal por um esquema de associação histórica com outras mulheres do interior.
Existiu um pensamento levantado em uma discussão certa vez com um amigo, que nos levava a entender a América Latina como uma construção única de subdesenvolvimento histórico-econômico e uma multiculturalidade que seria fruto da miscigenação e sincretismo da nossa colonização parasita. Desta forma, assistir ao filme de Pamela Yates e Newton Thomas Sigel é assistir a história de um povo e uma etnia sendo massacrada pelo invasor mais nocivo que existe, o homem branco. Em qualquer mínima reflexão feita a partir do filme é possível se pensar em uma questão de linguagem que brinca com o choque moral de uma maneira cada vez mais gradativa. Ela nunca é vulgar em suas imagens, nunca apresenta de forma gratuita uma violência explícita ou uma violência ética por parte do filme.
E como mulher, isso rende uma das cenas mais chocantes do filme quando alguém pergunta na frente de várias mulheres “Levanta o braço quem já foi estuprada”. Poucas vezes senti uma vulgaridade tão intensa numa câmera, pouca vezes senti uma violentação moral tão agressiva em toda minha vida. Os realizadores não nos forçam olhar aquela situação para uma empatia repentina para com a situação, eles nos mostram uma realidade e cobram uma justiça. Não à toa, o filme usa parte de seu tempo para mostrar-nos os rebeldes que buscam resistir ao Estado e sua repressão.
Um dos maiores trunfos dos diretores é mostrar que o processo de alienação militar, para que se instaure a repressão, não é só muito próximo como também apoiado pela Igreja Católica. A postura covarde nas respostas do padre são convertidas em ironia de montagem. O conteúdo explícito do filme é apresentado após uma profunda imersão na atmosfera do frenesi nacional retratado, apenas após sentirmos uma violação da perda da inocência de crianças que desenham aquilo que viram, corpos, sangue e estupro, e posteriormente uma emancipação da racionalização da resistência militar através da violência é que o conteúdo funesto é introduzido, entrando como uma faca, nos fazendo espremer os olhos a fim de diminuir as informações do quadro.
O filme reabre uma ferida na situação latino-americana atual, pois, poucos lugares no mundo são tão enraizados em sua cultura local como a América do Sul. A forma como nós entendemos essa redimensionação da política norte-americana em solo latino é que nos permite resistir de forma mais incisiva. Yates e Sigel introduz a igreja protestante no filme, mostrando a colonização religiosa que os nativos sofreram por empresas (não igrejas) vindas dos EUA, onde os pastores são brancos e rezam a missa em espanhol até onde a língua os permite. Em determinado momento um deles pergunta a inglês a outra pessoa “Como eu falo isso em espanhol mesmo?”. E todos eles riem, gargalham. Sabem que é um processo sem voltar, pois ao trabalhar o elemento “Fé” numa sociedade, o desequilíbrio e a esperança pendem sempre ao fascismo. E como o mesmo está sempre no cio, como dizia Brecht, olhamos para o espelho e vemos o fantasma da história nos assombrando.
Em outro momento o filme cria um ar de sexualização da política de imperialismo e nos leva ao concurso de Miss Guatemala, onde a vencedora é uma branca de olhos azuis. Em outro momento remetem a cultura de exploração mercantil e assim em diante os diretores vão impactando cada vez mais com suas imagens e seus lugares de fala. Quando vemos uma câmera que funciona como epicentro moral/ético do conteúdo fílmico, em um contexto de intervenção imperialista numa guerra de interesses econômicos e políticos onde os fatores humanísticos são ignorados lembrar de Síria e a intervenção americana de Trump torna-se ainda mais assustador.