A morte está lá fora
Por Fabricio Duque
O cinema brasileiro, salvo exceções, sempre dividiu-se em duas categorias: o muito comercial e o super independente. É o oito ou oitenta, sem variações intermediárias. E alguns conseguem adentrar um submundo ainda mais cruel do baixíssimo orçamento. Assim, logicamente, toda a estrutura de realização precisa ser moldada por dificuldades e limitações.
“Organismo”, do diretor Jorge Pereira, integra este time de obras que lutam para existir e sobreviver na primeira semana de exibição. É briga de cachorro grande em um ambiente hostil, cruel e altamente competitivo. Para vencer, o filme precisa atender todos os principais requisitos de qualidade técnica. “Organismo”, baseado em uma história real, conduz seu público pelo cinema direto, de amadorismo orgânico e de ingenuidade estereotipada. É um filme pessoal, de esquetes de vida, que conta os percalços do presente de um “aleijado” intercalado com o paralelo das digressões de sua infância.
Há uma importação estética de conflitar naturalmente o barroco com o moderno. O físico de um corpo cuidado com ópera. Ou a nostalgia do passado à moda de “O Pântano”, de Lucrecia Martel, conjugando uma ambiência de “O Piano”, da diretora Jane Campion, por seus semelhantes acordes musicais. É um filme propositalmente solto, que não quer imergir o espectáveis, apenas deixá-lo contemplar o tempo de viés improvisado, mascarado de espontaneidade.
Com a estrutura de narrativa caseira, “Organismo” acredita na aproximação de seu público, com sua câmera próxima, quase personagem. Mas talvez por ser pessoal demais, até porque cada filme é um filho a seu realizador, nós sentimos falta de um melhor equilíbrio cadenciado, visto que as interpretações destoam-se do anti-naturalismo com a sugestão recorrente dos silêncios.
Um homem recém-lesionado (o ator Rômulo Braga) que está aprendendo a lidar com a condição de cadeirante entra em crise existencial após o falecimento de sua mãe, evento que o lança em uma espiral de memórias de infância, de relacionamentos passados (com a atriz Bianca Joy Porte) e principalmente das percepções sobre seu corpo antes e depois do acidente.
“Organismo” costura uma aproximação com a cinematografia de Terrence Malick, com seus fragmentos de memórias, em uma narração intimista, de dentro para fora. É a essência do humano, de “ver o mundo através de frestas em que sempre há uma porta entreaberta onde algo se revela”, como a inocência de crianças espiando uma mulher nua tomando banho. “Espiar o mundo do lado de fora tem seu beneficio que quem está de dentro passa batido”, diz-se, com a invisibilidade mosca da arte de observar entre acontecimentos típicos no colégio e na aula de catequismo, “deixando tudo por conta do perdão”.
O longa-metragem desdobra caminhos e subtramas. Quer abordar e abraçar o mundo com as pernas. Com ou sem música de Ney Matogrosso e uma sugestão a de Sigur Rós, deseja-se traduzir uma perceptiva poesia coloquial em palavras e definições filosóficas (de “manter respeito”) e cientificamente metafísicas, como discutir a diferença entre fauna e flora e “o animal é feito de gente”. Há um que de “Cinema Paradiso”, mas sem cinema, não na infância e sim na televisão, por exemplo, “127 Horas”, de Danny Boyle, que aqui serve de metáfora ao tema abordado.
“Organismo” é uma epifania fabular e corporal sobre “chegar bem no centro de nossa existência” pela ressignificação do que é ser homem. E sua impotência e vulnerabilidade. E se “expressão artística é ficar se esfregando?”. É um teatro irregular (máscaras e papeis de uma apresentação vanguardista manifestação cultural, por exemplo), entre sussurros e conversas bruscas, em alfinetadas estereotipadas de um roteiro tão autoral que gera a fragilidade da construção.
Sim, reiterando, há uma liberdade no cinema amador, de resgatar detalhes como o relógio parado. Mas que se engessa pelo querer em se transformar em uma popular novela de vidas apresentadas pela inocência do sentimental. “Só os fortes vivem de verdade; tudo se renova”, diz-se aludindo a falta de “compaixão, justiça e equilíbrio” da História de Jó (“‘Amaldiçoe a Deus e morra”). “A morte está dentro de nós” com a fragilidade do “medo de exposição e rejeição”. O filme busca a sutileza, mas encontra a brutalidade visual. “Viver é frágil, sou apenas um corpo que busca para existir e ainda pulsa”, finaliza-se.