O divã de um insatisfeito
Por Bruno Mendes
A iluminação opaca do quarto, os lençóis acinzentados e o posicionamento do casal na cama surgem como elementos narrativos para, nos primeiros minutos de “O Estado das Coisas” (dirigido e roteirizado por Mike White), pontuar certa monotonia no “mundo” de Brad Sloan (o ator Ben Stiller). Sim, o sujeito com vida confortável e família feliz é insatisfeito e sente-se fracassado. Sonha em ter a vida dos ex colegas de universidade: um mora em mansão na frente da praia e tem duas mulheres, outro é “capa de revista” e já lançou livro e o empresário “obscenamente rico”, dispensa as mordomias da classe executiva de um voo comercial, pois tem o próprio avião.
O irônico e talvez o ponto que mais enquadra o filme no gênero comédia dramática (ou “dramédia”) é a proximidade do personagem-chave com o ‘inacessível’ mundo dos ricos, cujos “mimos”, podem ser vistos e não tocados. É como se ele observasse pelo lado de fora, e intimamente aos prantos, uma bolha transparente e intransponível.
Na tentativa frustrada de adquirir uma passagem na classe executiva, o objetivo supremo não é beber champanhes caríssimas, sentar na poltrona confortável ou receber sorrisos mais generosos do grupo de comissárias, mas pertencer a um seguimento ‘x’ da sociedade, ver – e principalmente ser visto – e fugir do lado de fora da tal bolha, por onde só circulam tipos desinteressantes.
Centrada na crise existencial do protagonista, a obra ganha pontos positivos com a consistente interpretação de Stiller, capaz de expor em momentos distintos a angústia, constrangimento e até tristeza por estar distante do grupo social daqueles que em tempos joviais dividiam conversas amenas e até se nivelavam com ele em termos de status quo.
Amparado nesse mérito, o filme exibe sua maior eficácia na construção dos personagens de maior destaque em cena. A Interação de Brad com o estudioso filho Troy Sloan (Austin Abrams) – no período da viagem de ambos para Boston – é exposta de modo sensível e sem jamais cair no excesso melodramático.
Por mais que o patriarca da família resmungue para si mesmo por considerar-se “pobre em círculo de ricos”, e até questione sobre a possibilidade de sentir inveja do talento do próprio filho, o roteiro (e o sábio olhar do ator na composição) nunca indica “horizontes morais”, ou seja, não há julgamentos, apenas a sábia e prudente observação de quem conduz a história – neste aspecto – com a mão leve e habilidosa.
A relação com a esposa Melanie (Jenna Fisher), a antítese do marido, é retratada de forma mais breve, porém correta e, mais uma vez, em consonância com a personalidade multidimensional de Sloan, que não se limita a ser um invejoso ou superficial. Se por um lado ele questiona se o presente poderia ter sido melhor, caso tivesse casado com uma mulher mais ambiciosa e até indica que a vida sexual do casal não anda às mil maravilhas, as entrelinhas – flagrantes na maneira como interagem – expõe tranquilidade, carinho e, quem sabe? amor entre os dois. Tudo indica.
Por outro lado, ainda que a mencionada “mão leve” de Mike White entregue um personagem complexo, O Estado das Coisas tropeça por um equívoco bobo e grave no aspecto narrativo, o uso excessivo e, por vezes, irritante do voice over. A utilização da narração para referenciar pensamentos, ideias ou evocar lembranças, funciona como recurso narrativo em distintas propostas, contudo, em demasia prejudica o ritmo da história e é redundante, principalmente quando a produção já é rica no ponto de vista visual e o elenco tem amplo talento para expor com minimalismo o repertório de sentimentos. E este é o caso do filme de White.
Por outras palavras, vem a impressão que a obra não acredita em seus próprios méritos e tenta gritar “verdades” no ouvido do espectador o tempo todo, do modo menos criativo possível. Uma pena, pois, a sugestão encaminhada pelos silêncios e tantos exemplares da “linguagem cinematográfica não verbal” são sublimes, interessantes e perfeitamente aplicáveis.
Entre erros e acertos, “O Estado das Coisas” é respaldado positivamente por propor interessantes reflexões sobre uma questão pertinente. Afinal, por qual razão o sujeito que não tem iates, viaja na cadeira apertada da classe econômica e não é conhecido na alta sociedade seria um ‘fracassado’? Será que a galera que com frequência atualiza o stories do instagram com vídeos e fotos em praias paradisíacas não sofre por razões similares ou problemas diferentes? Em suma: o que é fracasso?