Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava
E a pornochanchada reconstruiu a História do Brasil...
Por Francisco Carbone
Durante a Mostra de Tiradentes 2017
A diretora Fernanda Pessoa teve 5 anos de trabalho, entre pesquisa, roteiro, criação de linguagem, captação de imagens e montagem, para elaborar sobre uma ideia muito boa: como falar sobre o momento do Brasil, dos anos 60 a 70, através do gênero mais identificável e rentável de 40 anos atrás, a ‘pornochanchada’. A ideia, de fato inédita e muito rica, deveria ser fatalmente acidentada, tendo em vista a quantidade de riscos que Fernanda se auto-impõe, tentando dar conta de tantos olhares e posturas sobre o período, e sobre os tópicos que se propôs a abordar. No entanto a gigante empreitada dá flores, frutos e se revela um acerto sem fim, com momentos de brilhantismo.
O Documentário “Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava” é uma releitura histórica da ditadura militar no Brasil, com ênfase nos anos 1970, através apenas de imagens e sons de filmes da chamada pornochanchada, o gênero mais visto e produzido no período. O termo, fruto das junções das palavras “pornô” com “chanchada“, serviu para classificar um tipo de filme confluía por fatores econômicos e culturais, em especial com a liberação dos costumes, produzindo uma nova tendência no campo cinematográfico pelo questionamento comportamental e na exploração do erotismo, este como um comercial elemento à massa, influenciado pelas comédias populares italianas, combinando títulos com duplo sentido nas tramas que normalmente se serviam de temas como a virgindade, a conquista amorosa e o adultério. Para muitos, apelativas, grosseiras e vulgares, mas que teve um grande sucesso de público, como “A Dama do Lotação” (1978), de Neville d’Almeida, que é a quarta maior bilheteria da história do cinema brasileiro, com 6.5 milhões de espectadores.
Imaginem vocês traçar esse paralelo de informações, do golpe de 64, da emancipação feminina, de diversos preconceitos como racismo e homofobia, sobre o próprio desbunde da década de 70, o amor livre, o uso desenfreado de drogas, e os tabus que o próprio gênero enfrentou e enfrenta até hoje. A partir disso, criar um roteiro inteligível que una de maneira coesa e fluida cada uma desses tópicos, sem atropelar nada e de maneira madura e sensata. Pois Fernanda pode ser considerada uma guerreira implacável, ao lidar com tanto material inflamável, encontrar material que em muitos casos são raros e/ou impossíveis, lidar com o preconceito que produtores, diretores e atores tem com o material que eles mesmos produziram na época (e Fernanda em dois momentos “brinca” e denuncia isso de maneira exemplar), e sair vitoriosa de um jogo complexo.
O trabalho de montagem de “Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava” ajuda o esforço hercúleo de Fernanda, ao reconfigurar e dar timing a quantidade exorbitante de filmes, inseridos e não-inseridos no corte final e no próprio roteiro, e acaba por de fato contar a nossa história no período da forma mais inteligente, bem humorada e crível possível, sem apelar a didatismos e excesso de explicações que poderiam poluir o longa, que da forma que ficou não apenas diverte e seduz, como aponta o surgimento de uma realizadora inteligente e profunda, que não teve medo do tantos ‘nãos’ que deve ter ouvido e entrega uma obra madura e pertinente, não somente à nossa história, como também ao nosso tempo.