Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar
Uma pequena pérola do cinema brasileiro
Por Vitor Velloso
Durante o É Tudo Verdade 2019
Marcelo Gomes é um dos diretores brasileiros do momento, merecidamente, afinal ele é o cineasta que realizou: “Cinema, aspirinas e urubus” (2005), “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009), “Era uma vez eu, Verônica” (2012), “Homem das Multidões” (2014), com Cao Guimarães e “Joaquim” (2017). Uma baita cinematografia, versátil e com uma potência ímpar. Seu novo longa “Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar”, não fica para trás, pelo contrário, uma força fílmica única que chega com força no 24º É tudo Verdade.
Um documentário que vai à cidade natal do cineasta, Toritama, no agreste de Pernambuco e descobre que as mudanças que o tempo e contemporaneidade impuseram sobre ela, aconteceram de maneira mais intensa que o esperado. Atualmente o local é conhecido como a “Capital do Jeans” e possui um sistema de produção em um modelo bastante único, mas comum no mercado de trabalho atual e em uma escala assombrosa. Muitos trabalham diretamente na produção destes jeans e são os próprios patrões, sem carteira assinada, logo, autônomos. Marcelo se deixa levar pela realização do filme e permite uma reflexão complexa das consequências deste modelo de negócio, seus ônus e bônus, mas sem nunca interferir diretamente no andamento do que está filmando, com exceção do fim, por um motivo específico que irei abordar mais à frente. Ele permite que os habitantes de Toritama se expressem e transmita de fato suas angústias e suas felicidades através da liberdade do realizador, que é capaz de registrar momentos pouco prováveis de cada um. Interessante ver como a parceria com Cao em 2014, rendeu um olhar bastante peculiar acerca da forma documental, que difere do cineasta mineiro, mas absorve determinados conceitos.
Em “Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar”, primeiro, ele não vai até a intimidade dos moradores e trabalhadores, possivelmente por uma questão temática de seu projeto, que não levanta essa possibilidade com tanta facilidade, mas também por uma ligação muito forte à cidade em si e desta maneira se atém às pessoas como parte daquilo, respeitando suas individualidades e possibilitando que as características pessoais de cada um venham à tona através deles mesmos.
Em um segundo momento, Marcelo é absolutamente hábil em concentrar seu formalismo em um industrialismo de uma concretude que se permite deixar levar pelo material, porém sem nunca soar mecânico, mantendo o controle e o pragmatismo sob medida, não à toa, faz uma intervenção direta no processo cinematográfico. Onde decide retirar o som de uma tomada e explicitar a angústia que determinado som estava lhe causando. Então, mais que um longa documental, ele expõe o próprio processo criativo e como sua produção se modifica em tempo e espaço a partir de necessidades próprias. É uma exposição autoral feita com uma sinceridade bastante revigorante.
Mas claro, tudo isso jamais seria possível sem a mente brilhante que organiza essas imagens, Karen Harley, que apesar de odiar o termo pela ausência do feminino, sou obrigado a utilizar, gênio. “Vergel” (2019), “Raiva” (2019), “Zama” (2018), “Que horas ela volta” (2015), “Febre do Rato” (2011) entre outros trabalhos incríveis. Incontestável. O trabalho que ela realiza aqui é de uma energia tão… própria que a cada corte o espectador fica maravilhado com aquilo, ele é seduzido pelas imagens e pelo fluxo que ela cria com uma organicidade crescente que nos sentimos diante na presença daqueles personagens. Além do mais sua montagem é crítica e possui um posicionamento político (que já está presente na citação do título), e crítico, bem claro quanto a tudo aquilo que vê, o que também está presente em Marcelo. A parceria, que não é nova, possui um dinamismo tão assombroso que a complementação da visão de ambos é dada em um campo quase hipotético, mas com uma realidade extremamente rígida. E esse paradoxo de vortex de sentimentos, gera um transe no espectador que busca pontos de fixação naquele ambiente e encontra sempre as mesmas referências, provocando uma exaustão tamanha de sons e imagens que culmina na interferência do realizador.
A concretização dos conceitos e das temáticas trabalhadas durante o filme são tão sólidas, que saímos da sessão atônitos, pois a consciência de uma grande obra não se dá em seu primeiro momento, ainda que a semente seja plantada. As reflexões que Marcelo propõe, que são possíveis pela Karen, chegam à um nível antropológico tão intenso, flertando com questões metafísicas (sem nunca ser intelectualóide, apenas vão acontecendo diante dos nossos olhos), culminam em sua participação direta com a vida de um dos moradores. Permitindo que a imagem seja criada a partir de um olhar exterior ao do realizador. E que momento temos, possivelmente uma das maiores brasilidades do cinema contemporâneo, que capta a essência de um povo que se satisfaz com o sorriso no rosto e a união daqueles que são capazes de provocar tal reação. Surreal, brilhante e encantador.