Um filme despedaçado
Por Fabricio Duque
“Em Pedaços”, exibido na mostra competitiva oficial a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2017 (vencendo na categoria de melhor atriz), é o mais recente filme do turco-alemão Fatih Akin (de “Do Outro Lado”, “Julia em Julho”, “Contra a Parede”). Quem conhece a carreira do diretor sabe que características do cinema independente são corroboradas quase como padrão estético visual.
Mas nem sempre obras repetem seus sucessos anteriores. Aqui, ainda que com a presença da atriz, queridinha do momento, Diane Kruger (de “Bastardos Inglórios”, “A Era da Inocência”, “Feliz Natal”, “Troia”), o roteiro tem seu desenvolvimento exclusivamente por elementos do entretenimento, optando-se mais pela estrutura ação de ser de Hollywood que pelo objetivo conceitual-autoral da trama.
Preocupa-se muito mais com gatilhos comuns de uma narrativa tensionada, de explosões, dramas exacerbados à histeria e urgência nas reviravoltas, que com o desenvolvimento e construção de suas personagens, estas sempre a postos a disparos, pancadas e bombas e vinganças, ainda que inicialmente hesitantes. É a ilusão da forma videoclipe (excessivamente no limite de suas conseqüências) que se sobrepõe absolutamente ao conteúdo.
Após cumprir pena por tráfico de drogas, o turco Nuri Sekerci (o ator Numan Acar, de “A Grande Muralha”) leva uma vida amorosa e tranquila com a esposa Katja Sekerci (Diane Kruger) e o filho Rocco na Alemanha. Um dia, ele e o menino, que estão no escritório, são mortos, vítimas de uma explosão criminosa, tragédia esta que deixa Katja desconsolada e com raiva. Ela batalha na justiça pela punição dos culpados, um casal neonazista (e um que preconceituoso sobre o Islã), e, insatisfeita com o desenrolar do caso, decide pela vingança com as próprias mãos.
“Em Pedaços” é acima de tudo uma crítica ao fascismo e a uma intolerância desmedida, latente e disfuncional que estão crescendo no mundo. O filme é uma resposta radical, passional e desesperada de revidar a impotência em frente a uma justiça que demora em julgar seus culpados. É também sobre a figura de um indivíduo social, uma mulher, até então submissa e frágil, que transforma necessidade em força, fraqueza em objetivo de vida e futuro, libertando sofrimento de uma alma sôfrega ao “pagar na mesma moeda” as tragédias que aconteceram em sua vida.
Busca-se a estrutura de estética documental de tópicos (divididos em capítulos – a fim de nos imergir à trama: a família, a mãe), de câmera que acompanha as ações de um preso que sai para casar com “My Girl”. Quando se diz que é um produto exclusivamente comercial, é porque clichês sentimentais são expostos: o choro de uma só lágrima, xingamentos de uma briga cotidiana (normal entre casais e do próprio filho que revida), reações sôfregas encenadas-teatralizadas, a tatuagem não acabava, o sangue na parede, a escolha da urna funerária, perguntas sobre atividades políticas (descobrindo que o próprio membro da família é terrorista), lembranças desfocadas e a utilização do artifício mais preguiçoso: a câmera lenta.
“Em Pedaços” conduz-se propositalmente pelo amadorismo, preocupando-se demasiadamente com micro detalhes. Quer ser mais caseiro, com sua câmera sempre na mão, por acreditar que assim desperte uma maior imersão em seu público. Mas o resultado não se configurou satisfeitos, e os “tiros” foram no próprio “pé”. Tudo é encenado, potencializado por uma sentimental trilha-sonora. Os atores esperam ordens (em espera) para interpretar seus diálogos e suas ações, como “cheirar cocaína para relaxar e ganhar força”, chorar no quarto do filho (e ouve do filho “que a mãe é a melhor”) e o anti-naturalismo forçado da sagra que diz “se você não existisse, meu filho ainda estaria vivo”, sobre o marido, com a ambiência gélida da neve fora de casa. Não há como ajudar de forma cúmplice um filme que não quer ser ajudado.
Assim, Katja, corajosa, carrega todo o peso das tragédias de sua família, a conseqüência da máfia da Albânia, tudo traduzido fora de tom, com um exagerado nível acima do equilíbrio permitido. O ponto alto do filme é a escolha radical da personagem principal, que como foi dito, hesita, volta atrás no lugar, aceitando que não deve pagar mais na mesma moeda. Entre vídeos, gregos, memórias, ciganos americanos, segredos, investigações (ela não tem nada a perder), sustos desnecessários, adoradores de Hitler (e especial um “covarde”, “estúpido” que oferece condolências), e suas festas nazistas, descrições óbvias do que acontece no momento, nós vamos à segunda parte: justiça e o “juiz que não vai tolerar reação emocional”.
Contudo, dentro desta desengonçada ladeira abaixo, como entrar em uma estrada perdida com música de suspense e olhares de efeito, “Em Pedaços”, que venceu a categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Globo de Ouro 2018, possui seus interessantes momentos salvadores, como o detalhamento de como se fazer uma bomba (colocada no carro de brinquedo do filho) e ou sua incompatibilidade de ser testemunha por usar drogas. Ponto. E a volta ao descambado discurso aplaudido e o zoom na tatuagem da terceira parte: o mar. A redenção do politicamente correto e a culpa justificada de ser apenas uma mãe desesperada por justiça (e por não conseguir lidar em “matar dois coelhos com uma cajadada só”). É um filme de uma mãe que tenta despedaçar aqueles que despedaçaram seu coração e sua família.