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Donbass

A guerra de nossos infernos

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Cannes 2018

Donbass

Uma das características do ucraniano-bielorusso Sergei Loznitsa (de “Minha Felicidade“, “Na Neblina“, “A Gentle Creature”)  é o domínio absoluto de sua construção narrativa, criando um jogo de cena que intercala sem explicações ficção, realidade e metalinguagem. Em seu mais recente filme “Donbass”, que integra a mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes 2018, o diretor corrobora o que fez em seus anteriores, que é imergir o espectador em uma violenta e catártica sinestesia em ruínas. Que incomoda ao confrontar nós espectadores, seres humanos e indivíduos sociais, com a cruel hostilidade do mundo.

Em “Donbass,” uma região do leste da Ucrânia, ocorre uma guerra híbrida, envolvendo um conflito armado aberto ao lado de assassinatos e roubos em larga escala perpetrados por gangues separatistas. Lá, a guerra é chamada de paz, a propaganda é pronunciada como verdade e o ódio é declarado como amor. Uma jornada pela região desdobra uma cadeia de curiosas aventuras, em que o grotesco e o drama estão tão entrelaçados quanto a vida e a morte. Este não é um conto de uma região, um país ou um sistema político. É sobre um mundo perdido na pós-verdade e identidades falsas. É sobre todos e cada um de nós. O longa-metragem é um filme coral de momentos, de vidas em esquetes que se cruzam em determinados instantes, de hipocrisias alienadas e existências idiotizadas. São treze episódios, cada um contando uma história, que aconteceu nos territórios ocupados de 2014 a 2015. É também uma “reflexão distorcida em um espelho curvo de um mundo underground”. Suas personagens convivem com o medo, morte, silêncio e com uma sociedade que está em colapso, em situações absurdas, grotescas, fanfarronas e de intimidante humor gaiato. É um mundo em guerra, que se retroalimenta de surreais, radicais e próprias regras.

“Donbass”, que é uma região industrial, de passagem, de barreiras de entrada e saída, tem estrutura de cinema direto, de metáfora da maquiagem. Que não sabe o status: encenação à câmera de televisão (entrevistas e dramas pessoais – e políticos) dentro do filme ou a realidade nua e crua editada (o protesto militante) em constantes plano-sequência. Pode também ser uma propaganda de autopromoção de um regime defasado e antiquado (com computadores fora de sistema), que parou no tempo e repete uma guerra contra o fascismo pelas mãos daqueles que acreditam terem um pouco de poder. São amadores brincando de política versus pensamentos narrados de passageiros em um ônibus silencioso e apático.

“Glória a Ucrânia” por soldados que passam tempo implicando com os civis e afeitando pequenos suborninhos de comida. É um país de divisas, em que cada barricada pode ser mais rígida ou mais branda. “Todos nós temos uma mãe doente. Nossa mãe terra está doente”, diz-se e ficam felizes quando um alemão é “pego”.

“Sou jornalista, não fascista”, responde. “Mas seu avô era fascista”, rebate-se. E quando acham um vidro de picles. Esses “sobreviventes” elevam suas ironias, seus deboches e suas desesperanças. São críticos e excessivamente desconfiados, esta outra característica presentes nos filmes de Loznitsa.

“Donbass” não livra ninguém. Tampouco as reuniões com o presidente que “não cuida do país”, o deixando “morrer”. Tudo está quebrado, decadente e necessitado. Seu povo vive na idade das pedras em que todos são suspeitos. O longa-metragem desenvolve-se à moda de um Samuel Beckett teatralizado com viés realista e de um “Dogville”, de Lars von Trier, que fica estagnado na resignação. É sobre vidas, limitações, restrições de liberdade e histórias que brigam para continuar existindo e que liberam a raiva guardada em um “voluntário judas fascista”, exposto em rua para linchamento público. É a volta a Roma antiga.

“Donbass” desenha também a ideia de um passional e manipulado povo perdido em esdrúxulos ideais e que se protegem dos fascistas sendo fascistas. “Carro retido não é roubo, é expropriação”, argumenta, devasta, destrói e vai embora. Não há como sair imune. Somos afetados em nossas emoções mais primitivas. Somos mais humanizados. Somos convidados a reagir. A acordar. A exigir a mudança. Mas não é o diretor, tampouco o roteiro do filme, que fornecerão esta esperança de um vida melhor. Não há suavizações. Tudo faz com que nossa crença no ser-humano perca totalmente uma segunda chance. Imperdível!

5 Nota do Crítico 5 1

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