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Desassossego (Filme das Maravilhas)

Inquietações de uma maravilhosa utopia

Por Fabricio Duque

Desassossego (Filme das Maravilhas)

Toda e qualquer obra cinematográfica é um conceito criativo e, seu autor, um maestro vanguardista que conduz o espectador à trama, cadenciando o ritmo, forma e narrativa. “Desassossego (Filme das Maravilhas)” é um desses filmes que nos imerge na atmosfera da nostalgia, suspendendo o tempo para que possamos contemplá-lo, como se estivéssemos em um universo paralelo dentro de poemas de Fernando Pessoa, Manoel de Barros e Adriana Falcão com a organicidade possível do diretor português João Pedro Rodrigues.

Outra característica de filmes-conceito é que o simbolismo imagético representa apenas uma metáfora abstrata de inferências com nossa própria realidade. É uma viagem de lá que permite que o cá vivencie a epifania. É uma conversão. De “Alice no País das Maravilhas” a uma realidade observada de forma sensorial, fora do corpo, em tom etéreo. A frase “O menino em atravessar um espelho e que do outro lado nunca ficaria sozinho” alude à fantasia, em uma lúdica experiência de uma viagem de barco, quase em negativo da própria percepção.

“Desassossego (Filme das Maravilhas)”, inspirado “Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, é acima de tudo um filme sobre o amor pelas pequenas coisas, pelas pequenas felicidades, pela maravilha dos instantes vividos, em uma psicológica ambiência de suspense iminente da loucura. “O cinema é uma coisa de vigaristas”, diz-se. Há aqui um limite tênue entre tradução e pretensão. E é exatamente essa mensuração que liberta a ideia e eleva a maestria.

É um filme coletivo, de amigos diretores amigos (“completos selvagens com coragem de atravessar espelhos”), unidos por um ideal manifesto realista-fantástico de desmistificar o próprio cinema, em busca da “insurreição” e ou da “fuga para Paquetá”. Cada um deles (Helvécio Marins, Clarissa Campolina, Carolina Durão, Andrea Capella, Ivo Lopes Araújo, Marco Dutra, Juliana Rojas, Maria Meliande, Caetano Gotardo, Raphael Mesquita, Leonardo Levis, Gustavo Bragança, Felipe Bragança e Karim Aïnouz), em dez segmentos-episódios, constrói uma filosofia poética e espirituosa, de uma psicotrópica catarse-entrega, parecendo monólogos filmados de um caseiro teatro hipster, com seus fragmentos à moda de um Manoel de Oliveira e suas estéticas visuais, como por exemplo, a lanterna que direciona o foco e a luz.

“Não confunda desespero com pressa. A pressa passa. O desespero é um deus”, diz-se. É também um filme-texto, um livro lido, uma carta (“para ler olhando”), um recado pessoal de corroborar a paixão. É uma regurgitofagia metafísica, uma tempestade de ideias, uma terapia confessional com seus pensamentos narrados. Aprendemos que “não se convoca os mortos e os amigos”. E sim a aproveitar cada segundo de um parque de diversões.

Há um que típico de Glauber Rocha. Urgente e passional. Foi baseado em uma carta encontrada em 2007 no armário de uma menina de dezesseis anos, e enviada aos cineastas daqui que imprimiram seus próprios conceitos em cada fragmento: futuro explode; ficar parado cansa; muitos podem viver sem água, mas ninguém vive sem amor; nascemos hoje quando o sol estava coberto de fumaça e enxofre; nasci carioca, fui enganada!; o anjo boxeador tenta descrever uma cena; o descobrimento do mundo; explosão; um índio, um robot, o raio laser; Berlim com festa. É sobre “amores perdidos” e sobre “cartas enviadas”.

“Desassossego (Filme das Maravilhas)” é um filme de “aventura e explosão” com seus não atores (constrangidos em suas leituras de cartas), com suas vidas com ou sem dinossauros e com seus “fantasmas no 3D”. Não há como não inferirmos a estrutura descontínua de Jean-Luc Godard em “Adeus à Linguagem”. É sobre “destruir alguns palácios”, entre pôster de David Bowie, sobreposição de imagens e bilhetes silenciosos. Captamos as interferências-espectros do Cinema Novo com Belair em um “projeto audacioso”, estilizado, saudosista, impulsivo e dotado de paixão. O cineasta francês citado acreditava que a pretensão compara-se a morte, por andar junto e se espreitar como uma presença fantasmagórica.

Esses cineastas traçam a “rota da viagem”: coral e compartilhada. Por “tempestade de sorvete” e “meteoritos do céu”, entendemos suas tendências, como a parte musical que deve ter estimulado “Sinfonia da Necrópole”, de Juliana Rojas. Este é um ensaio-estudo que permite tentar, usar e se libertar de algum possível padrão dominador e prisioneiro. Em suas análises metalinguísticas de roteiro, suas detalhadas micro-ações contadas. Tudo em uma imagem livre que deixa o tempo acontecer.

“Desassossego (Filme das Maravilhas)” é também sobre a vida que nos cerca. Suas praias, seus prédios, suas neves, seus lugares vazios em uma sensação pós-apocalíptica. Muitas das vezes querendo “deserdar dessa cidade”. É um experimento existencialista. Uma colagem do popular em foco. De esquetes em estilos-narrativas não convencionais. É o encontro com o próprio eu e com a própria essência. “Todo corpo é uma festa” explícita a diversão com o precisar do pouco, que se transforma com o jeitinho de não desistir do nada, tampouco do tudo.

4 Nota do Crítico 5 1

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