Pedagógico e pertinente
Por Bruno Mendes
O Brasil majoritariamente urbano e cristão, espírita ou mesmo ateu/agnóstico praticamente não estabelece laços culturais com populações indígenas que articulam modos comunicativos independentes e crenças que parecem pertencer a outro país ou mesmo outro período histórico. A concepção de que há muitos “Brasis” nesse espaço geográfico de dimensões continentais não é nova, mas ainda assim, os principais meios de comunicação destaca nas pautas o Brasil do “progresso” e, infelizmente, negligencia novos olhares. Pedagogicamente, o documentário “Como fotografei os Yanomami”, dirigido por Otávio Cury, preenche certas brechas e cumpre função interessante ao expor um “lugar novo”, que não está – ou não deveria – desconectado do “Brasil branco”.
Otávio Cury não entra em comunidades indígenas amazônicas com ambição de captar informações históricas nem para apresentar uma espécie de vídeo-aula sobre a tribo Yanomami. O foco do doc é mostrar o trabalho dos profissionais de saúde “brancos” e indígenas no cuidado dos habitantes de pequenas comunidades na floresta amazônica. Objetivadas ou sem intenção, as pinceladas críticas ao desamparo das estruturas governamentais em relação às tribos indígenas aparecem, é claro, sem peso maniqueísta ou tom ativista. É evidente que o documentário mostra a abertura de um posto de saúde e pessoas sendo vacinadas e medicadas, contudo, são escancaradas carências sobre um país cuja falta de empatia dos detentores da narrativa é clara, enquanto os “estranhos”, os indivíduos fora do “processo civilizatório” sofrem com isso.
Logo na abertura, ao anunciar em legendas uma história que perpassa a religiosidade dos Yanomami, o documentário debruça o olhar sobre a relevância cultural dos xamãs. O filme não é hipócrita. Cury mostra-se leigo como os expectadores. Quer aprender, pisar na terra, absorver um olhar novo sobre aquele povo e sobre seus respectivos pontos de vista sobre o mundo e as questões que envolvem a fé. A câmera na maior parte do tempo não é invasiva e observa os índios nas comunidades sem o ímpeto de flagrar individualidades ou explorar comportamentos muitas vezes caricaturizados por grande parte dos flagrantes usuais.
Embora em algumas comunidades o registro fotográfico e a filmagem sejam permitidos, a cultura Yanomami não aceita a captura de suas imagens. Depois da morte, eles querem ser esquecidos e as fotografias são objetos que perpetuam lembranças, algo danoso na perspectiva daquela fé.
A obra ganha ainda mais força – na sua pertinência pedagógica – ao expor o ponto de vista de técnicos de enfermagem. Moradores de Boa Vista, capital de Roraima, estes homens e mulheres de diferentes idades lidam durante muito tempo (alguns deles há 10 anos) com a população Yanomami e fornecem impressões claras e honestas sobre aquele universo.
Dois dos entrevistados dançam conforme os índios para representar o hábito, uma das mulheres expõe rapidamente como é feito um ritual de cura. Ainda que sejam os responsáveis pelos cuidados com as tribos, os profissionais ali não estão para tecer esclarecimentos sobre as condições de saúde de aldeias, mas como intérpretes daquele povo de idioma e cultura distinta. O olhar é interessado, vivo. Há empatia, zelo e certo fascínio.
Como ressaltamos, a crítica é inescapável e está entranhada à narrativa, mas o documentário é fundamentalmente escorado nessa ponte entre brancos e índios, caminho certo para direcionar o holofote sobre as populações estereotipadas pelas leituras simplistas que, infelizmente, são predominantes na comunicação de massa vigente.
Além do trato respeitoso e da curiosidade, o documentarista não escorrega em ambições desmedidas. A câmera de Como fotografei os Yanomami traz registros retos e sem pretensões estilísticas, dentre os quais muitas vezes evidenciam a vaidade dos realizadores em materiais artísticos. O olhar é honesto: as ruas são pouco iluminadas, modo de vida simples, barulhos de insetos mais forte que o dos carros. O espectador é estimulado a estabelecer quase que um vislumbre sensorial com a Roraima flagrada. Sentimos interesse em entender sobre o modo de vida dos indígenas e sentimos apreço pelos brilhantes enfermeiros. É o mesmo Brasil!
Na escola somos informados sobre os índios. O ativista Chico Mendes é saudado pela imprensa do mundo inteiro, mas por que entendemos tão pouco sobre os Yanomami e outros povos indígenas? Por qual razão pouco sabemos ou buscamos entender sobre as convicções morais e religiosas destes brasileiros?
Em determinada passagem, uma entrevistada pontua que as índias da tribo Yanomami quando se interessam por alguém, tomam a iniciativa e fazem o comunicado sem timidez. Ela, então, questiona porque isso não ocorre normalmente entre os “brancos”.
Será que nós “brancos” somos os reais proprietários do progresso?