A estetização antiética do genocídio como fato histórico
Por Gabriel Silveira
O fato histórico como essa peça de conta que o historiador cata com os dedos com o intuito de utilizar como liga ao presente. Liga que, na dialética desta justaposição, bota o presente em cheque, revelando a intenção do agente/materialista histórico. Como o poder sobre o fato histórico repousa sob os dedos do inimigo, da entidade dominante, do fascismo.
George Mendeluk escreveu e dirigiu “Colheita Amarga”. Mendeluk, alemão de descendência ucraniana, afirma seu contato com o Holodomor — genocídio, cometido pelo regime stalinista, que dizimou grande parte da população ucraniana durante o outono, inverno e primavera de 1932-3 (tendo este período como zênite do holocausto. O processo açoitamento soviético teve início em 1917) a partir de uma fome nacional utilizada como ferramenta de aniquilação étnica/cultural pelo regime soviético — como herança de sua mãe, vítima do crime contra a humanidade. Desde antes da dissolução da União Soviética em 1991, forças tem sido reunidas no mundo acadêmico na luta contra a manipulação soviética que trabalhava no enterramento do genocídio étnico, esforços relevantes como a publicação The Harvest of Sorrow (1986) de Robert Conquest e destaques no corpo do Harvard Ukranian Research Institute, que juntou recursos potencializadores na pesquisa da academia ucraniana, vêm trazendo a luz à narrativa da nação oprimida, tendo como um marco na jornada da consagração de sua verdade o reconhecimento das Nações Unidas em maio de 1990, onde, finalmente, o crime recebeu o rótulo de genocídio. Em 2014 a vencedora do Pulitzer Anne Applebaum publicou Red Famine, outra publicação generosa que veio a cair muito bem como explanação didática de entranhas históricas do conflito da Crimeia contemporânea.
Mendeluk afirma ter como catalisador e cerne da potência do anseio de realização de Colheita Amarga a herança da dor de sua família. Mendeluk, também, ostenta, em uma entrevista, seus honorários de pesquisa que entram no enquadro de certas publicações citadas acima. Como o senhor Mendeluk teve, então, coragem de realizar Colheita Amarga? Como Mendeluk teve a coragem de investir toda a força de potência de um discurso revolucionário na lama ao profanar toda a causa em nome de um produto industrial desprovido de qualquer sensibilidade para com seu próprio objeto? Antes fosse um produto lúcido que procura, através da linguagem, trazer conscientização. No entanto, como se conscientiza uma massa sem, ao menos, permitir-se um único momento de lucidez em seu discurso? Nem, ao menos, respeitar toda a mágoa e o purgatório de todos os fantasmas? O filme de Mendeluk é a afirmação de toda a técnica sobre os espíritos. Potencializar 20,000,000 de dólares sobre o projeto que acredita expor a peste em si, quando, na verdade, transforma todo o purificar do contato em um extrato de óleo que vaza do mecanismo de estetização da guerra. O homem acreditava estar produzindo um expurgo nacional enquanto perdia-se no redemoinho de uma funesta propaganda bélica. O drama é tratado como um comercial de sabonetes. Um comercial de sabonetes sobre o Holodomor produzido no Canadá, representado, exclusivamente, por norte-americanos que, obviamente, também, representam, apenas, em inglês (há uma sentença exclamada por um figurante russo num plano de fundo em um dado momento. Por desencargo de consciência. Minha.)
Mendeluk ridicularizou a maior sentença do povo de sua mãe, escarrando na história da Ucrânia um drama romântico de aventura que negligencia o ofício cinematográfico de sua própria nação em prol de um anseio de mercado que, além de criminalmente imoral, é castrado e fracassado. Mendeluk faz com que tudo pareça uma grande piada horrenda que institucionaliza-se em cima de um Stalin decadente. Uma presença de algozes soviéticos que performam como canalhas de uma comédia televisiva. Estes, presos numa representação de um mundo dicotômico, onde a vida ucraniana anterior a invasão soviética era iluminada e decorada como um conto de fadas da novela das 6h, e a Ucrânia da fome, da morte, é o reduto das vulgaridades representativas pintada em um cinza de tinta guache que projeta na tela toda a luta do povo ucraniano como uma ridícula e fordista narrativa gameficada que, no fim, não passa de um passeio por exercícios formais pateticamente executados.
Colheita Amarga é um fracasso antiético que manipula o fato histórico ao bel prazer de seu box office que arrecadou US$557,004 domesticamente com seu orçamento de US$ 20,000,000. O melhor exemplo de um exercício de estetização da guerra que anseia triunfar na aba do massacre étnico e acredita que, encerrando a obra com a cartela de um comentário de seis sentenças expositivas, alcança a redenção absoluta.