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Cine Marrocos

Sunset Marrocos

Por Vitor Velloso

Durante o Festival É Tudo Verdade 2019

Cine Marrocos

Documentários que flertam com campos antropológicos sempre possuem um obstáculo a superar, uma barreira nítida de quem aponta a câmera e o assunto, a linha tênue entre a objetificação das pessoas que fazem parte do material e a necessidade de ampliar as visões centristas que nos dominam. “Cine Marrocos” de Ricardo Calil é um exemplo de longa que compreende as limitações que há entre o diretor e seus personagens, por isso busca uma abordagem de revitalização local para que esta aproximação seja feita de maneira mais orgânica.

Mas essa estratégia só funciona pois ela se distancia conscientemente de um retrato única e exclusivamente social, ele utiliza uma abordagem coerente com o local, um antigo cinema, e reconstrói as cenas dos filmes que são exibidos pelos moradores (em uma ocupação no Cine Marrocos), longas antigos, como “A Grande Ilusão” do Renoir, utilizando os residentes como atores, realizando uma espécie de oficina de atuação e permite que eles se expressem através do cinema. Calil é hábil em utilizar este dispositivo como gatilho ao social, já que eles se permitem expor através de pequenas entrevistas parte de suas histórias e expurgar alguns sentimentos durante o exercício de ator.

Existe uma pequena fragilidade neste discurso, tanto no que foi escrito acima, pois sem o auxílio da imagem, o projeto soa um tanto quanto invasivo e lúdico, quase buscando o exótico, em um tema gravíssimo afinal são pessoas sem residência. Porém, a construção que é dada pela montagem e a estrutura que o diretor propõe, deixa bem claro que não trata-se de um caso de pornô-pobreza, mas sim de uma abertura bastante objetiva dos personagens que permite uma liberdade ampla o suficiente para que eles sejam sinceros diante da câmera e denunciem de forma menos direta o descaso do Estado, que só tende a piorar com o atual governo.

A potência de “Cine Marrocos” não reside necessariamente nas performances e nas reconstruções cinematográficas, mas na multifacetação de um Brasil que é reprimido pelas autoridades, ignorado pela maioria e julgado por parte do eleitorado, inclusive a mídia. Alguns dos depoimentos dos residentes são reveladores de uma história mundial contemporânea que é definida a partir da morte e do terror. Essas ocupações não possuem necessariamente a intenção de lesar a propriedade do Estado como a ignorância alheia gosta de pautar em suas discussões supremacistas, mas sim de dar um local para que estas pessoas possam morar. Se a prefeitura ignora a existência do local e não usufrui daquele espaço, que ceda à quem precise.

Porém, além da temática política, inerente ao material, há um olhar crítico diante do líder da ocupação, pois apesar de seu aparente altruísmo, devemos lembrar que o ser humano se corrompe e o olhar do cineasta possui um distanciamento maior quanto estas questões de política interna e brevemente partidária, que se revela uma decisão inteligente no fim das contas.

As questões estéticas que são abordadas na obra são relevantes para um certo anacronismo de determinadas tramas e que abraça uma multinacionalidade (como já mencionado aqui) que está presente em todas as camadas do prédio, mas estruturalmente não adicionam ao filme uma reflexão tão frutífera quanto às questões periféricas do documentário, o que gera um sentimento que se concretiza com o progresso da projeção, como um todo não existe um aprofundamento de diversos pragmatismos estéticos e sociais que são esbarrados durante as filmagens. Aliás, se a intenção era despertar naquelas pessoas questões artísticas e de expressão própria enquadrá-las em modelos estrangeiros e conduzi-las neste centrismo da linguagem dos filmes referenciados, não produz um efeito tão concreto. A intervenção não é realizada através de uma agressividade ou coisa do gênero, mas exclui determinadas possibilidades dentro de uma sociabilidade, inevitavelmente, que enxugam algumas camadas do longa-metragem.

“Cine Marrocos” é interrompido por determinadas adversidades, que não vale revelar aos que não acompanharam o drama verídico, que demonstra que a solidez de determinadas passagens residem no carisma e no espírito de cada um dos moradores. E ainda que isso não seja um problema direto, revela uma fragilidade da realidade da produção, enquanto intenção, do documentário. Mas não tira por completo os méritos do trabalho de Calil, da montagem, da fotografia e da interação realizada, por tabela, enquanto há a filmagem.

Não é especialmente uma âncora formal, nem social, do documentário brasileiro contemporâneo, mas abre algumas possibilidades a serem debatidas em um futuro muito breve.

3 Nota do Crítico 5 1

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