Benzinho
Um filme que vive, ama, cresce e aceita a necessidade da partida
Por Lisandra Detulio
Durante o Festival de Sundance 2018
“Benzinho” teve sua estreia mundial aqui no Festival de Sundance 2018, nesta quinta-feira, em Park City, nas montanhas rochosas americanas com clima agradável de oito graus positivos. O novo filme de Gustavo Pizzi, que junto com a Karine Telles, repetindo a dobradinha de “Riscado“, apresentou-se a uma plateia lotada no primeiro dia desta maratona cinematográfica.
Filmado em tempo recorde de cinco semanas, “Benzinho” é sobre a vida e saudade do deixar ir. É sobre uma família que precisa apoiar um dos filhos a ter sua oportunidade. O diretor Gustavo Pizzi disse que a ideia surgiu pela análise de sua própria vida. Ele, assim como Karine Telles, que tiveram dois filhos (gêmeos já crescidinhos que estão no filme), saiu de casa muito cedo para lutar por seus sonhos, passando por todos os tipos de dificuldades financeiras e apertos do di-a-dia. “A gente nunca sabe quando nossos filhos vão embora. Uma hora eles vão sair de casa. E não sabemos quando vão voltar”, diz. É um ciclo. O círculo da vida, como já foi abordado em “O Rei Leão”. “A gente não sabe o que nossos pais sentiram. E a gente não sabe o que vai sentir”, complementa.
É impossível não referenciar seu filme anterior “Riscado”. Não há como negar sua pessoalidade imbuída. A trama conta a história do primogênito de uma família de classe média baixa que é convidado para jogar handebol na Alemanha. Isto desestabiliza sua mãe Irene (Karine Teles), a envolvendo em uma caldeirão de sentimentos. Além de ajudar a problemática irmã (Adriana Esteves), a matriarca precisa lidar com as instabilidades do marido (o ator Otávio Müller) e se desdobrar para dar atenção ao seus outros filhos. Sim, ela terá de enfrentar sua partida antes de estar preparada para tal. Este é o cerne de toda a questão, visto que uma mãe, mais as latinas brasileiras, criam seus filhos para elas mesmas. Comprando roupas no brechó ou optando não tomar leite todos os dias. O filho pensando grande e a mãe ainda pensando pequeno (o eterno medo de transcender a outro nível).
A narrativa usa deste sentimento para se construir espontânea, leve, real e humanizada. É sinestésico pelo domínio absoluto e despretensioso da direção, que conduz com maestria seus atores. Karine Telles está de novo impecável. A “Carminha” Adriana Esteves está irretocável. Muito por causa do tom humorado, divertido, engraçado, que transmite verdade por causa de seus diálogos de perspicácia coloquial e popular. Não é uma “dark comedy”.
“Benzinho” é sobre a boa sobrevivência. Em tirar leite de pedra. Em contornar os problemas de uma torneira quebrada. Mas também em viver plenamente dentro das limitações, descobrindo a verdadeira simplicidade e a essência pura da felicidade. Eles são felizes com o que conseguem. E estendem esta sensação. Até porque é isso que os alimenta. Estar junto, trocar a vida com os entes queridos em uma resiliente co-dependência fraterna, solidária e orgânica.
Este último é o adjetivo preciso a ser usado: organicidade. Eles representam a humanidade nos comportamentos de não enganar a verdade. Eles têm amor e pressa. Sofrem com as decisões de se comprar um casaco. E se divertem no lago da casa de praia deles em Araruama, que por necessidade tem que ser vendida. Outra característica de uma mãe é o simbolismo. E abrir mão deste “santuário” de lembranças, afasta a tranquilidade e turbilha a mudança.
“Benzinho” emociona de forma natural, sem gatilhos comuns de manipular preguiçosamente o público (estes que já foram explicados pelo diretor e por Karine no vídeo exclusivo que nosso site fez na época de “Riscado”). Sim, todos acreditam, sem titubear, absolutamente, em seus riscados. É um filme que fala sobre crescimento da família em relação ao outro. É digerir, entender e concretizar as transformações progressistas inevitáveis da própria existência.
É uma história de amor em suas camadas mais complexas de pessoas que simplificam este sentimento. Eles vivem mais (esta é sua terapia cognitiva) e pensam menos sobre questões filosóficas e afins, oriundas da temática psicanalítica. Mas há a burocracia legal da emancipação (por ser menor – um dos muitos casos de jogadores mirins que recebem uma proposta irrecusável) e há o medo da não volta, porque se acredita que a vida no exterior é melhor. É a projeção da perda. Sofrer por antecedência. Desconstruir a convivência para conseguir lidar melhor com a falta.
A fotografia de Pedro Faerstein (de “Aspirantes”, de Ives Rosenfeld) é outro ponto alto por retratar com tempo, poéticos planos visuais, silêncios sentimentais (como a cena da boia no lago que toca fundo os corações mais insensíveis) e naturalidade o cotidiano familiar.
Na maioria dos filmes brasileiros, ainda que ótimos, há furos e fragilidades no roteiro, deixando a narrativa sem ritmo e fora de tom. Neste não. Cada peça estava cirurgicamente trabalhada em seu devido lugar, criando cadência e movimento. As coisas aconteciam e cada uma delas era interessante e integradas em seu contexto. São os pequenos detalhes, como usar a camisa como amuleto contra a saudade e a saudade que virá, que norteiam e equilibram a história do início ao fim.
Nós nos colocamos no lugar dessa mãe, sentimos seu sofrimento, porque também saímos cedo de casa e a “abandonamos” de certa forma. Os encontros não são mais ininterruptos e sim sazonais. Nossa casa muda. Viramos visitas de uma família que já integramos algum dia. Os filhos começam seus próprios problemas, questões, anseios, planos e sonhos. Ficar para sempre, ou retornar. Nós enxergamos quando nossa mãe chora nossa partida no aeroporto, igualzinho a personagem que reconstitui exatamente o que já passamos (aqui no ponto de ônibus). É real e pessoal.
Orgulho maior ainda foi ver a sala do cinema completamente lotada. Não tinha mais ingressos para comprar. Não tinha mais lugar para sentar. Há um curta-metragem do Luciano Vidigal chamado “Lá do Alto” que simplifica o complexo com poesia do afeto, do carinho, do amor. E “Benzinho” é isso. É a coisa mais simples e mais bonita.