Um certo otimismo incurável
Por Michel Araújo
O ano de 2019 é extremamente preocupante para a discussão da demarcação de terras indígenas em vista das diversas invasões que ocorreram no início do ano, fomentadas pelas afirmações do presidente Jair Bolsonaro de que as terras indígenas devem ser exploradas e mineradas, chamando as ONGs ambientalistas de “picaretas”. Não bastasse isso, o atual ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, afirmar não conhecer sobre Chico Mendes, o maior ativista ambientalista da história do país – quiçá da América Latina – é também outro prato cheio. O documentário “Amazônia – O Despertar da Florestania” (2019) infelizmente não aborda esse desdém escancarado do atual governo com o tema que intitula o filme, a “florestania” – neologismo cunhado pelo autor Antonio Alves para denominar a cidadania na floresta amazônica. Há, pelo contrário, um apreço pelas questões da experiência da vida na floresta, da influência da arte e dos artistas em movimentos populares e manifestações, e dos vários microcosmos indígenas que resistem numa sociedade capitalista industrial.
Dirigido por Christiane Torloni, “Amazônia – O Despertar da Florestania” abre com um plano de um hemisfério da Terra sob uma voz em off reproduzindo as palavras do ex-ministro da educação do governo Lula, Cristovam Buarque. Buarque, em resposta à provocação de um jornalista sobre a “internacionalização da Amazônia de um ponto de vista humanista”, afirma: “(…) Se a Amazônia, sob uma ética humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. (…) Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. (…) Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. (…) Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa!”.
A questão apontada por Buarque tangencia temas diversos, dentre os quais o mais pertinente diz questão à identificação nacional em relação à Amazônia. Nesse quesito, o documentário irá se empenhar em refletir a dimensão cultural da Amazônia sob uma perspectiva empirista, apesar de apresentar em dados momentos conhecimento científico do tema. Torloni para além de diretora cumpre também o papel quase de uma protagonista ao retratar o que é a experiência e a vivência do “estar na Amazônia”, de ver e ouvir o ambiente. Há uma preocupação quase de uma dimensão dramática nesse retrato. Além do “estar na natureza”, a atriz também comenta a respeito do “estar na manifestação”, e há uma montagem de várias imagens de arquivo de personalidades famosas como Belchior, Gilberto Gil, Caetano Veloso em manifestações como a “Diretas Já”, por exemplo. Não há um esclarecimento no filme do porque há a necessidade estar ali, apesar de ser possível deduzir que é por uma questão de visibilidade, representatividade na grande mídia, repercussão e promoção da causa.
A questão desse “estar”, dessa experiência vívida se reflete em parte na forma do filme, que se arrasta um pouco antes de entrar no cerne da questão. Explora muito uma visualidade, um espaço filmado, há registros visuais inclusive filmados manualmente pelo ponto de vista da própria Christiane Torloni, o que dá um ar ainda mais empírico para a imagem cinematográfica. Há comentários no filme acerca de como essa “florestania” é mal compreendida, fala-se do brasileiro querer saber mais de uma “consciência importada”, ou seja não procurar aqui dentro, na brasilidade, seu sentido de ser. É apontado também que na biblioteca de um colégio amazônico há exemplares de Sócrates, Platão e Jorge Amado mas não há um livro sequer sobre manuseio sustentável da pesca, ou sobre a flora amazônica. Trata-se de um academicismo que não leva em conta as condições materiais da região, apesar do material de leitura primeiramente citado também ser importante.
O filme tateia suas questões com sensibilidade, buscando certas raízes idealistas da vida amazônica, numa orientação um pouco mais poética e menos materialista propriamente, o que não é de todo ruim considerando que o cinema se trata de uma obra de arte. Entretanto, partindo da prerrogativa de que o documentário em questão está denunciando o descaso e a falta de compreensão das potências culturais e sustentáveis da floresta amazônica, se faz necessário ser mais rígido no apontamento crítico. Citar nomes, citar dados, falar dessas questões atuais, das invasões e prospecções econômicas que assolam o que foi conquistado mesmo em governos extremamente liberais e privatistas como Collor e FHC, que expandiram tremendamente a demarcação de território indígena. O longa termina num tom de triunfo otimista, que infelizmente não cabe considerando o tremendo déficit de demarcação de terras a partir do governo Dilma e seu efetivo congelamento no regime Temer. Há a necessidade de encaminhar o espectador para o real curso que a história tomou, e os temores que assolam essa luta para além de uma mera falta de compreensão da cultura nativa, mas se estabelece como uma máquina econômica de desolação do que a Amazônia representa. O despertar da florestania já foi vivido, estamos agora testemunhando a tentativa de obter o perecer dela.