CRÍTICA
Perversidade acima da razão
Por Michel Araújo
Em se tratando de temas impactantes e de grande peso moral, existe uma certa propensão na arte imatura a expor esses temas de forma consideravelmente rasa, crendo que o seu peso por si só pode sustentar a necessidade dramática e crítica. “A Quarta Parede” (2019) faz justamente isso. Numa visão de mundo simplificada, e com um protagonista que parece aspirar a um antiheroísmo, o filme faz mais mal do que bem aos debates que tangencia.
A premissa de “A Quarta Parede” (2019), dirigido por Hudson Senna, soa como uma narrativa adolescente ao estilo de “Meninas Malvadas” (2004), – um personagem que se sente injustiçado por não conseguir o papel que queria na peça de teatro manipula e conspira para a desgraça da vida de todos os seus outros colegas – e o desenrolar do enredo e a construção dos personagens se mostra mesmo inferior a títulos como o anteriormente citado. À exceção do sociopata que protagoniza a obra, Theo (Tutty Mendes), todos os outros personagens parecem ter sido pasteurizados num arquétipo de estudante de artes cênicas liberal. Os debates entre eles sobre liberdade feminina, liberdade LGBT, incentivo à cultura – citando em específico a Lei Rouanet – se mantém numa superficialidade tamanha que se torna um desserviço ao diálogo desses temas. O filme tateia de forma leviana, e portanto negligente, a questão da “desconstrução” dos padrões sociais, tornando-a mais confusa e problemática ao invés de elucidá-la e fortalecê-la com uma lógica dramática e argumentativa sólida. Para além disso parece haver uma espécie de perversão no olhar da câmera que mais abusa dos corpos do que os liberta, que os explora e os desnuda gratuitamente, ao ponto que não há mais peso ou propósito no nu artístico, apenas a lascívia que o drama parece querer criticar mas acaba por endossar na forma fílmica.
Como dito ao início, parece haver uma crença de que temas impactantes trazem impacto por si só, e nessa chave “A Quarta Parede” utiliza de situações problema como o estupro, o espancamento de um filho gay, o suicídio, o abuso moral constante dos atores pelo diretor da peça como mero gancho dramático sem profundidade. Parece que o impacto dessas questões para além de inerente ao drama, deveria ser cumulativo na ascensão ao clímax narrativo, o que não se mostra verdade. A filme acaba por abraçar uma acepção ideológica infantil regrada pela índole do protagonista, que irá argumentar ao final do filme que “todos somos podres por dentro”, “o mundo é podre” e que “o inferno são os outros” – esta última sendo citação da peça de Sartre, “Entre Quatro Paredes”, numa tentativa de se expiar da culpa de ter arquitetado um estupro e um suicídio para ganho próprio. Essa construção antiheróica do personagem de Theo como detentor de uma lógica verossímil e válida ofusca toda e qualquer potência crítica efetiva do filme, se entregando ao apreço de um pessimismo semi-niilista.
Em meio a tanto caos moral e mesmo cinematográfico é difícil precisar onde o filme poderia ter acertado. Parece uma obra problemática desde a iniciativa. O corpo de atores da Wolf Maya está bom. Não extraordinário, mas eles tem seu mérito. Infelizmente estão atuando em função de uma obra extremamente pretensiosa. As digressões dramatúrgicas onde os personagens aparecem cobertos de tinta e lama não parecem cumprir um papel propriamente cinematográfico. Seria algo talvez mais cabível e interessante aos moldes da encenação teatral. A forma cinematográfica, não apenas nesse aspecto, como em outros é preterida. Em diversas cenas vemos câmeras de selfie e POV (ponto-de-vista) filmadas com celular, além das inserções que brotam no quadro, mostrando mensagens e telas de celulares. É uma tendência dúbia que foi rapidamente abraçada pelo cinema contemporâneo, numa acepção de que a “janela do cinema” não mais gera identificação, e é necessário uma linguagem multimidiática para atingir o reconhecimento aristotélico do público. O que novamente levanta a questão de “por que escolher fazer um filme”? A obra parece muito mais se enquadrar ao teatro ou à video-arte. Existe uma questão performática que poderia ser melhor explorada, se abandonada a trama revoltante que carrega a obra. Tanto em termos de linguagem como em termos morais não houve preocupação em se estruturar uma composição sólida, provocando um limbo artístico que nada parece ter de útil.