Criaturas do Senhor
O radical não de uma mãe sugada
Por Fabricio Duque
Festival de Cannes 2022
“Você não encontrará um sapinho no ninho de um falcão”, provérbio irlandês.
Exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2022, o longa-metragem “Criaturas do Senhor”, que agora chega aos cinemas brasileiros, desenvolve sua narrativa pelo tom literário de um realista teatro filmado (como uma peça irlandesa de tradição esquecida, com suas danças típicas), soando como se estivéssemos lendo o próprio filme. Aqui, sua trama opta pelo tema universal (à moda de Fiódor Dostoiévski) ao contar a história do retorno de um filho a sua conterrânea comunidade litorânea para recomeçar a trabalhar com ostras. O longa-metragem foi filmado em película 35mm, isso cria uma sensação de tempo, ainda que editado, e uma atmosfera de imersão em que o espectador percebe a interpretação, como uma forma de proteção à verdade. Talvez seja porque aqui, ora subjetiva, ora aquática, ora distante, ora próxima, é a câmera que tem o poder de nos conduzir, nos inserindo na linha tênue entre receber realidade ou encenação demais, muito por causa de sua sutileza de zoom quase imperceptível. “O tempo coloca tudo em perspectiva muito rápido”, diálogo, quase em monólogo, que encontra o olhar estendido do outro.
“Criaturas do Senhor”, dirigido por Saela Davis e Anna Rose Holme, de Nova Iorque, evoca a crença do imaginário local de que todos ali não encontrarão paz nas esperanças (“tudo que eu preciso, está aqui”), que são “criaturas de Deus na escuridão” e assim resolvem não mais desperdiçar quereres futuros em vão, tornando-se resignados e conhecedores de seus lugares no mundo. Para isso, encontrar a fotografia certa era de suma importância, até porque filmar em 35mm requer bem mais adaptações que o digital. A escolha foi saturar a imagem pela luz artificial e escurecer a fim de criar o simbolismo do mal que está à caminho. O começo do fim. O roubo, a pesca clandestina, a volta sem explicação, o ente doente que acorda para morrer, a maré viva, os avisos em tom ameaçador, as mentiras para proteger a “imagem idealizada” (por exemplo, do suéter de natal), “os garotos que sempre são garotos e sugam a mãe”, pistas de uma tragédia anunciada.
Em “Criaturas do Senhor”, o protagonismo está na mise-en-scène, que capta as mais detalhistas expressões de suas personagens, inclusive o momento da descoberta de que às vezes é preciso “cortar o mal pela raiz” e proteger o “sapinho”. Essa mesma ambiência cria também a personificação do invisível. De uma presença incômoda. De algo que está próximo. Os pássaros sabem. O vento sabe. O mar sabe. Até os “fantasmas” sabem. Até os sonhos de nossa personagem já a advertiram, mas é difícil perder a ingenuidade em que mais amamos, seu filho, que retornou da Austrália, lugar “sem magos e sem virgens”. Nem Deus “está lá”. Só que o provérbio irlandês rebate: “Deus inventou o uísque para evitar que o irlandês governe o mundo”. Cada vez a construção cênica nos aprisiona. A trilha sonora insere um acorde que mais parece arranhões. E assim, a dúvida só aumenta, no melhor estilo “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, e a incerteza da traição. Culpado ou inocente? Cometeu o crime ou foi “arrastado para essa zona”?
Aqui, assim como com Capitu, a dúvida plantada corrói e mutila o próprio amor. O próprio conceito de confiança incondicional. Compactuar para salvar – aceitando que o meio em que vive é dominado por homens com suas vontades mais primitivas – ou tomar a decisão mais radical da vida? Em uma guerra de inocentes, a opção é aniquilar o inimigo, não é mesmo? Há um que de “Ensaio Sobre o Cegueira”, de José Saramago, em “Criaturas do Senhor”, porque a pureza da mãe em enxergar o filho a cega. É a única que não acredita totalmente que o mundo não presta e que todos não valem nada. Eles tornaram-se “andarilhos” de um local escolhido e muitos não querem mais ser andarilhos. Não querem mais desligar esperanças com “cervejas e uísques”. Ou com o trabalho que impede o próprio pensamento de existir. “Criaturas do Senhor” é uma intimista e irlandesa experiência imersiva que busca encontrar saídas no meio de paralisias e desistências dos seres que abrem mão de seus lados humanos por não vislumbrarem a luz no fim do túnel. “Três tipos de homens não entendem nada de mulheres: os jovens, os velhos e os que estão entre os dois”, outro provérbio irlandês. “Criaturas do Senhor” aumenta a cartada ao escalar os atores Paul Mescal e Emily Watson. Ele, o mais novo queridinho do momento, devido a sua série “Normal People”, que está em “Aftersun”, também exibido no mesmo ano em Cannes. Ela, a atriz que consegue explodir catarses interpretativas pelo minimalismo de suas expressões – quem não lembra de seu papel em “Ondas do Destino”, de Lars von Trier.