Corpolítica
Quem te representa?
Por Paula Hong
É inegável o crescente debate em torno da representatividade de pessoas marginalizadas na mídia. O anseio por ver-se na tela se estende para a compreensão de que ocupar os mesmos espaços daqueles que por tanto tempo reforçaram essa marginalização é imperativo. No entanto, qual tipo de representatividade se fala, que se anseia? Quais são os corpos que se colocam à disposição para personificar lutas ou projetos políticos que garantem a subsistência dos grupos que representam? Quem escolhe — ou melhor, elege — o representante? Em “Corpolítica”, o jornalista Pedro Henrique França investiga a lacuna de pessoas LGBTQIA+ na esfera política brasileira. Ele pretende compreender o sintomático contra-ataque à onda conservadora que ganha força no governo Bolsonaro, acompanhando as campanhas de quatro candidatos e candidatas a vereadores/as do Rio de Janeiro — Mônica Benício e Andréa Rak — e São Paulo — Erika Hilton e William de Lucca —, no decorrer do ano de 2020. O diretor também entrevista ou recupera, através de materiais já prontos, outras figuras políticas antagonistas que compuseram e ainda compõem, de um modo ou de outro, a pequena parcela de pessoas LGBTQIA+ nas instâncias de poder nas câmaras e nos plenários.
Um dos aspectos mais belos do documentário é a inclusão dos familiares de cada candidato em dados momentos das entrevistas. Conhecê-los pelo prisma de seus ideais reforça as motivações que os levaram a concorrer para o cargo político, mas essa aproximação para além da camada ideológica é o que possivelmente permite estreitar identificação e, por conseguinte, ver-se representado numa pessoa que carrega dores, entraves, dificuldades, incertezas, deleites, anseios, amores e consciência da relevância de estar vivo num país que mais mata LGBTQIA+, sobretudo pessoas trans e travestis. Mas os relatos não são heterogêneos assim, logo percebe-se certa uniformidade nas vivências e nos processos de aceitação e superação.
A história de Érika Hilton é uma das mais notáveis. Não somente por seu carisma, mas por, através da família, trazer a questão da religiosidade cristã — tanto católica quanto evangélica —, sendo ela um dos maiores contribuintes para um imaginário preconceituoso e destrutivo, principalmente no ambiente familiar. Ao ser aceita e acolhida pela família após ser expulsa de casa, Érika acaba por ser exceção à regra imposta a pessoas trans e travestis. Embora emocionante, ao relato não é traçado um paralelo à influência da bancada evangélica que dificulta a garantia de direitos às pessoas LGBTQIA+, e que reforça tais concepções pela sua agenda; eles são os representantes de quem, de fato, destrói famílias.
No entanto, apesar de propor aproximação, o próprio diretor não se coloca dentro do documentário. Exceto por breves narrações que expõem suas inquietações/motivações para a realização do documentário e no voice-over das perguntas aos entrevistados, Pedro Henrique França não aparece — aqui reside uma das maiores contradições do filme, pois ele toma para si o papel restrito de entrevistador e não se coloca como personagem-guia que incide provocações mais diretas no debate levantado no decorrer de “Corpolítica”, sobretudo porque opta pelo formato de documentário que, infelizmente, mantém-se engessado. Se o debate é relativamente novo, se há possibilidade de contribuir pela ruptura de um imaginário brasileiro danoso dessa parcela da população, por que não o fazê-lo também por intermédio de um formato cinematográfico de dinâmica convergente? Talvez a fotografia pudesse ter brincado com a posição dos entrevistados, mantendo os de esquerda à esquerda do quadro, os de direita, à direita e os isentos, no meio.
O afastamento ganha igual proporção no modo como a premissa inicial vai se descosturando da intenção de acompanhar as quatro narrativas principais. O formato documental escolhido não dá conta da grandiosidade do assunto referente à representatividade. Quando “Corpolítica” amplia a discussão, se perde na superficialidade do termo em si. No entanto, um dos êxitos e méritos do filme reside em trazer figuras como Fernando Holiday e Tammy Miranda para demonstrar que não basta ser LGBTQIA+, porque o fato em si não assegura qualquer respaldo a essas vidas: estar inserido nos lugares das tomadas de decisões não significa que as pautas serão pleiteadas. Representatividade cosmética, ou seja, aquela que serve apenas para estar em tela, é vazia, pois não carrega consigo os interesses da comunidade LGBTQIA+, e tampouco se preocupa em fazê-lo.
Outro êxito talvez esteja no espaço-tempo retratado. O recorte das eleições de 2020 para vereador e vereadora foram cruciais para dar início à reflexão dessas ausências. Há falácia quando dizem que o Brasil é diverso, pois essa ampla diversidade não está presente nos lugares onde suas demandas básicas, diga-se de passagem, são abordadas com o devido cuidado e respeito: ao contrário, elas são trazidas para a discussão de modo hostil, tanto verbal quanto fisicamente. É a partir dessa consciência que se enxerga a urgência em expandir os quadros políticos através dos corpos representantes de uma política que venha a executar o que outros, já inseridos lá dentro, não fazem.
Por fim, percebe-se que o documentário é parcialmente eficaz naquilo que propõe. Assim como as figuras retratadas no filme, “Corpolítica” pode ser considerado como o pontapé da discussão. Por vezes a prolonga ao ponto da repetição e cansaço, quase esvaziando o debate em si mesmo, mas deixa material para ampliá-lo, quem sabe inspirando alguém disposto a contribuir realizando outro documentário.