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Corações das Trevas: o Apocalypse de um Cineasta

This is the end, my only friend, the end

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 1991

Corações das Trevas: o Apocalypse de um Cineasta

Sabemos que alguns filmes incorporam na forma final, voluntariamente ou não, o processo de produção, ou melhor, na linguagem utilizada por Coppola, o acontecimento de sua produção: tudo o que rola nas filmagens, sejam tornados esfuziantes, ataque cardíaco do ator principal (Martin Sheen) durante as filmagens, ou helicópteros emprestados pelo déspota filipino Ferdinando Marcos – tudo isso transmuta-se de alguma maneira para os sons e imagens que vão para a tela, como foi o caso do fabuloso “Apocalypse Now”, que Francis Ford Coppola finalizou em 1979. Na grande maioria das vezes, a sutura operada no acabamento final oculta ou disfarça as cicatrizes fílmicas, mas com Coppola foi diferente: meu filme não é sobre o Vietnã… meu filme é o Vietnã, asseverou o diretor quando da apresentação em Cannes, onde levou a Palma de Ouro. E mais: a maneira como fizemos foi muito parecida com a forma como os americanos estavam no Vietnã: estávamos na selva, éramos muitos, tínhamos acesso a muito dinheiro e equipamentos e, pouco a pouco, enlouquecemos.

Esse ímpeto auto-vociferante é a tônica do imperdível documentário, complemento perfeito para o longa, “Corações das Trevas: o Apocalypse de um Cineasta” – realizado em 1991 pela dupla Fax Bahr e George Hickenlooper. Carregado por uma coletânea inacreditável de depoimentos, confissões íntimas, revelações, perplexidades e, também, cenas de cenas, contou ainda com o making off filmado pela mulher de Coppola, Eleanor. Um documentário que desvela as entranhas e lutas intestinas que permitiram a realização deste épico formidável, desbravador de um território quase-insondável, o espaço dramático guerra do Vietnã. Uma guerra, cabe lembrar, pensada em estilo colonial durante a Guerra Fria, feita para conter a expansão do comunismo no sudeste asiático, no maltratado Vietnã, herdeiro de uma colonização francesa cruel e acachapante. E que saiu pela culatra: alvo de protestos intermináveis na terra do tio Sam, muita gente recusando a convocação, derrubou o paradigma das guerras justas que o poder em Washington vendia para os eleitores (não que os EUA não continuem se arvorando de polícia mundial: agora o serviço militar não é mais obrigatório, é profissional, o espinhoso problema do draft ficou despolitizado).

Claro, muita coisa mudou, inclusive o próprio Vietnã – que se tornou uma espécie de país capitalista de perfil autoritário, governado por um partido único, Partido Comunista do Vietnã. A saga de “Apocalypse Now” começa num roteiro que John Milius escreveu no curso de cinema da USC para ser rodado em 16 mm, adaptado do livro de Joseph Conrad, “Coração das Trevas”, que seu colega George Lucas iria dirigir: uma pequena equipe arriscaria a vida no Vietnã, liderados pelo agente de operações secretas Willard, em busca do recluso e renegado Coronel Kurtz. Segundo Lucas, ninguém quis financiar a produção porque acharam que todos seríamos mortos. Em 1976, Coppola, o maior diretor de cinema à época dos Estados Unidos (e do mundo), não teve dúvidas, como mostra “Corações das Trevas: o Apocalypse de um Cineasta”: filmar o roteiro de Milius era a melhor opção para pavimentar sua independência dos grandes estúdios, bastava limpá-lo e recondicioná-lo. A guerra do Vietnã era tabu em Hollywood, e estava na ordem do dia na mídia: a ideia de atualizar o delírio afro-colonial de Conrad para o rio Mekong e a selva vietnamita/cambojana era altamente sedutora. A personalidade de Kurtz, que inspirou o texto magnífico de Conrad, seria derivada da história notoriamente brutal do chamado “Estado Livre do Congo”, um território que existiu como propriedade privada do belga Rei Leopoldo II, de 1885 a 1908.

O modelo foi o comerciante de marfim e administrador do rei, Léon Rom, conhecido por sua violência: usou cabeças decepadas de 21 congoleses para decorar os canteiros de flores de sua casa. Uma inspiração que cativou uma nobre genealogia, de Conrad a TS Elliot, de Milius a Coppola, e finalmente a Marlon Brando. Este, fazendo o coronel louco, era um genial ator – e caro: cobrou 3 milhões de dólares por três semanas de trabalho, 1 milhão adiantado. É ele quem lê o poderoso poema de Elliot, no coração da selva cambojana, cercado por uma multidão de indígenas fanáticos e um pequeno destacamento de soldados drogados, comandados pelo Capitão Willard – cuja missão era mata-lo:

Nós somos os homens ocos

Os homens estofados

Uns aos outros apoiados

Crânio recheado de palha

Ai de nós!

Nossas vozes secas

Frouxas sem sentido

São vento em capim seco

Pés de rato pisando

Em nossa adega seca

 Figura sem forma

Sombra desbotada,

Força entorpecida, gesto sem expressão

Assim é que o mundo acaba

E acaba mesmo – uma das agonias de Coppola, descrita com detalhes em “Corações das Trevas: o Apocalypse de um Cineasta”, era justamente como acabar o filme. As sinistras palavras enunciadas por Brando no final – the horror, the horror – são tiradas do Kurtz de Conrad e destacadas pela epígrafe que TS Elliot ajuntou para seu poema The Waste Land. Elliot, como se vê, era um devoto leitor de Conrad, fato que não escapou a Coppola. This is the end, my only friend, the end, são palavras de outro poeta, Jim Morrison, que também brilham no filme de Coppola – um filme poético, enfim.

5 Nota do Crítico 5 1

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