Curta Paranagua 2024

Compra-me um Revólver

Distopia em Contexto de Guerrilha

Por Michel Araújo

O cinema latino-americano não usufrui do mesmo capital monstruoso que das indústrias norte-americana e europeia, e por tal, se determina a contrabandear sua criatividade por entre as limitações infraestruturais. Ao menos o cinema verdadeiramente independente o faz, num contexto de expressão autoral, ao invés de tentar emular a fórmula comercial do estrangeiro. Embora muitos dos filmes sejam feitos, atualmente, numa lógica narrativa clássica – não mais nos regimes ultrametafóricos das vanguardas do cinema moderno -, ainda vemos aqui e acolá resquícios duma alegoria tão cara ao cinema terceiro-mundista. Existem ainda, permeando essas obras, enxertos de uma sensibilidade social que simplesmente não funciona regrado apenas pela causalidade da narrativa clássica.

O longa-metragem “Compra-me um Revólver” (2019), dirigido por Julio Hernández Cordón  – diretor de “Polvo” (2012) e “Te Prometo Anarquía” (2015) -, trata de um futuro distópico onde a população foi drasticamente reduzida pela escassez de mulheres, e os cartéis do narcotráfico dominaram todo o território mexicano. A premissa, embora de certa forma simplista, se traduz bem para a história do filme justamente por abraçar sua simplicidade. Como anteriormente dito acerca do cinema latino-americano independente, o filme é construído esgueirando-se por entre limitações infraestruturais, e nesse sentido, a obra em questão não irá se preocupar em explicar o cenário distópico com todos os detalhes e toda a hiperexposição de uma narrativa puramente comercial. Muito do que antecede a história – assim como do que a irá suceder – permanece ambíguo, tornando apenas esse miolo, esse recorte que a obra faz da narrativa, o verdadeiro essencial. Nesse sentido, as implicações sociais emergem com mais proeminência do que se o filme se preocupasse em esclarecer com absoluta coerência e verossimilhança todo o contexto que acarretou o cenário presente. O que importa para a obra é como a personagem de Huck, uma pequena menina, filha de um viciado em drogas que trabalha num campo de beisebol que a gangue do cartel local frequenta, irá sobreviver nesse cenário absolutamente hostil ao seu gênero.

O pai da menina precisa a todo momento esconder seu gênero para que ela não seja raptada pelo cartel, e Huck o faz utilizando uma máscara do herói de quadrinhos, Hulk. A questão da violência de gênero é aqui abordada através de uma sensibilidade infante que não busca tomar tanto a frente da questão da mulher, em se tratando de um diretor homem, mas revolve em torno dessa inocência comum a todas as crianças com a qual todos podemos nos identificar. Em diversos momentos vemos a própria forma do filme adotar certas composições de estranhamento que parecem embarcar no imaginário infantil. Há dois enquadramentos zenitais (filmados verticalmente num ângulo reto em relação ao chão) tanto num momento que Huck e seu pai são forçados a comparecer a uma festa organizada pelo chefe do cartel – que recebe a alcunha apenas de “Chefe” -, e os carros são filmados assim, como também após a gangue do Chefe sofrer um ataque surpresa durante a festa. Neste segundo, Huck caminha pelo cenário desolado repleto de cadáveres, os quais são representados pelo que parecem esculturas de papelão bidimensionais com tinta vermelha envolta, compondo uma colagem pela extensão do cenário, talvez simbolizando esse distanciamento fabulado que a criança tem com a violência. Em forma de um artesanato rústico na elaboração desses cadáveres falsos, o filme traduz para a linguagem do cinema algo que mais pareceria ter a ver com o videogame, o que se aproxima da violência com a qual as crianças atualmente mais tem contato, a violência catártica e sistemática dos jogos eletrônicos.

Após o ataque, sobram Huck e o Chefe, sendo o pai de Huck levado embora por essa outra gangue que efetuou o ataque. Durante seu momento juntos, Huck pergunta ao Chefe, por conta de seu cabelo comprido, se ele é homem ou mulher, ao que ele responde: “às vezes sou homem e às vezes mulher”. Esta é uma colocação curiosa na mesma medida que é incerta, e não muito coerente considerando a narrativa do personagem até então. Quiçá o seu “ser homem” seria estar no controle, possuir o revólver, ser o executor da violência, e o “ser mulher” seria, após o ataque à sua gangue, se sensibilizar com o lado de quem sofre dessa violência, estar indefeso. De fato há um ponto de virada após o ataque à festa em que a tela fica completamente branca por alguns segundos, na passagem da noite para o dia. Essa possível metáfora, apesar de dizer respeito à história contada, se coloca num ponto um pouco fora da curva da lógica narrativa causal, visto que esse momento de virada interno do antagonista se trata de uma mera especulação, e não de um aspecto que o filme esclarece sem dúvida alguma.

O diretor Julio Hernández Cordón afirmou em entrevistas que queria de certa forma representar aspectos da realidade violenta do México, como os cartéis do narcotráfico que de fato aterrorizam a população, bem como os carros fortes ao estilo da franquia “Mad Max”, os quais de fato existem no México, e são montados pelo próprio narcotráfico para combater seus rivais. Então ao mesmo tempo que há um exagero característico de uma distopia, algo de real se traduz na preocupação social. A violência contra a mulher, bem como as infâncias roubadas de crianças que muito cedo são apresentadas a um mundo de extrema violência parecem que nunca cessam de ser uma grande preocupação. E aqui, em “Compra-me Um Revólver”, Cordón funde os dois temas numa dramatização que parece transcender ambos, no contexto caótico da latino-américa, em que um olhar esperançoso é quase sinônimo de um olhar infantil.

4 Nota do Crítico 5 1

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