Compasso de Espera
A verborragia de um manifesto
Por Giulia Dela Pace
Durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2022
“Compasso de Espera” foi um dos filmes da mostra que homenageou Jorge Bodanzky no 55º Festival de Brasília – cineasta que atuou como diretor de fotografia no longa –, e dirigido por um dos maiores nomes do teatro brasileiro: Antunes Filho.
No longa-metragem, Jorge (Zózimo Bulbul) é um intelectual que vive uma relação degradante, numa espécie de mutualismo com Ema (Élida Gay Palmer), uma rica mulher branca. Mas as coisas começam a se complicar quando Jorge se apaixona por uma jovem modelo branca de classe alta, Cristina (Renée de Vielmond). Os dois começam um caso, que tem um desfecho violento por repressões externas contra o casal interracioal protagonista. Cobrado por sua irmã, Zefa (Léa Garcia), que o acusa de ter se afastado da mãe e dela e esnobado suas raízes quando buscou no estudo seu isolamento das raízes e tentativa de aceitação pela burguesia, Jorge se perde mais uma vez.
Tendo “Compasso de Espera” como seu único longa-metragem, Antunes Filho e equipe demonstraram ter um olhar bastante vulnerável sobre a crueldade do racismo no Brasil. Não é à toa que o filme é brutalmente atual ao abrir as portas para se pensar os múltiplos racismos presentes na sociedade brasileira – em especial, o velado e o cordial. Mas o filme-manifesto também faz breves, porém duros, apontamentos para a questão interseccional das mulheres, questões de classe e da população LGBTQI+. Como vemos em certos recortes de cenas onde o personagem gay branco diz preferir ser negro do que ser gay, ou mesmo a relação da irmã de Jorge, uma mulher negra e pobre que não teve a sorte de ser apadrinhada pelo milionário que financia os estudos dele e sua carreira artística.
Mas nada neste filme pode ser interpretado ou visto tão superficialmente, embora a construção do filme tenha uma estética próxima de uma comédia romântica em momentos necessários, pois nada que tange minorias em um país de latino de terceiro mundo pode ser interpretado sob um único e simplório ponto de vista, mas por diversos fatores que afetam de diferentes formas esses indivíduos e grupos.
Ao criar um protagonista negro que tenta ser aceito pela elite branca, buscando essa aceitação por caminhos “virtuosos” como o estudo, a boa oratória ou a produção artística, Antunes Filho não foi inocente. Porque Jorge sofre um tratamento racista velado brutal de inúmeras partes: nas exposições de carreiras que variam da produção artística ao chão de fábrica pelo filme, na sua intrincada relação com Ema uma mulher mais velha que usa Jorge como gigolô; amigo de confissões e uma espécie de “pet muleta” para sua saúde mental – tal como faziam os senhores de engenho com as escravas… Entre outras questões.
Mas o que chama atenção sobre a relação de Ema e Jorge, por exemplo, é que o protagonista não foi construído para ser só bom ou só mal. Ele é a vítima, mas como homem e em busca de aceitação também se aproveita e “tira vantagem” da posição social de Ema e seus contatos. O personagem de Zózimo é complexo e repleto de vazios, que vão desde uma falta de uma ira menos elitizada aos sentimentos de não pertencimento e amores impossíveis. Jorge não é um simples personagem e não corresponde aos arquétipos e estereótipos vulgares do homem negro no cinema, mas é o retrato de uma pessoa negra com uma dolorosa consciência política conflitante com seus objetivos – que não são ruins ou errados, mas tenebrosamente impossíveis no contexto nacional à época. E pior, objetivos possivelmente ainda distantes atualmente em todo o globo.
O filme verborrágico de Antunes Filho é um manifesto completo que aborda questões, muitas vezes, difíceis de trabalhar em menos de duas horas, de forma sensível. É um longa moldado para ser compreendido de forma direta. “Compasso de Espera” – indubitavelmente pelo extenso currículo brilhante do diretor – consegue atingir seus objetivos por meio de uma característica teatral muito forte no país: uma realidade bretchiana de pensamento crítico constante.
Assim, Antunes, Zózimo, Charles Fernando e Bodanzky esmagam o dedo na ferida – ferida essa, que não é apenas histórica no Brasil. Mas o filme cutuca diretamente os brancos acomodados com certo silêncio do movimento negro dentro de seu meio elitista. É uma beliscão sobre atitudes racistas veladas, ou mesmo escancaradas. E não é apenas na narrativa e tema que o filme é primoroso, mas no trabalho de elenco, na fotografia cativante de Bodanzky, que ressalta muito mais Zózimo que o restante do elenco branco e ainda consegue não estourar os pontos mais expostos da imagem. Sem falar da montagem de Charles Fernando de cair o queixo, com um ritmo impecável e certos momentos estilísticos que atacam o coração do espectador. Além, é claro, da montagem precisa de uma única cena de “ação” do filme, quando Jorge e Cristina são atacados na praia. Cena de ação boa depende de um editor porreta.
Por ser um manifesto e ter cunho altamente acusatório sobre a sociedade brasileira – burguesia em especial – Antunes não poupa o explícito e o óbvio, pois não é necessário preencher uma carta expositiva do racismo no Brasil com monólogos “bonitinhos”, mas é sim necessário um filme direto que incomode e faça refletir sem rodeios. Direto e claro como a água, “Compasso de Espera” é uma das grandes obras nacionais, desconhecida por muitos.