Como foi o 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Tradicional premiação entrega Candango para filme com indigenista morto em 2022
Por Ciro Araujo
Durante a semana dos dias 14 a 20 de novembro, o cinema brasileiro teve uma parte de sua história retomada: o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, ou simplesmente Festival de Brasília, retomou para sua 55ª edição – o mais longevo festival do gênero – no método presencial. A ocupação no icônico CineBrasília foi um alívio, a forma cristalizada de definir que estar ali era importante.
Foi um ano político. E como foi. Um festival duas semanas após os resultados das eleições, com nervos ainda à flor da pele, tornaram o que já é político, ainda mais. Na abertura, o Secretário Especial da Cultura e Economia Criativa, Bartolomeu Rodrigues (ou simplesmente, “Bartô”), fez questão de abrir o evento com um discurso inflamatório. Chama a atenção para seu explícito posicionamento político anti-manifestações golpistas que explodiram pelo Brasil. “Ditadura nunca mais!”, foi um dos dizeres, enquanto bradava sob a tutela de um governo distrital que, não apenas em 2018, como em 2022, foi apoiador justamente de Jair Bolsonaro. Pois bem, um ato de coragem, no mínimo.
A programação também foi complementar. Talvez não tenha possuído uma seleção, em suma, muito impactante para a linguagem cinematográfica. Mas, com o objetivo de criar essa volta à um lugar que ficou tanto tempo desocupado, com certeza foi tiro certeiro. As sessões percorreram questões sociais contemporâneas. Filmes sobre a ascensão das cotas, longas em que protagonizaram personagens cujos suas recentes mortes foram recebidas com indignação pública. Ou inclusive o fogo de Ceilândia para o mundo que Adirley Queiroz decidiu espalhar para a capital. Cinema, acima de tudo, é político, mas aqui foi mais um pouco. O cerne do Festival de Brasília está aí, então pode-se avaliar que as intenções curadoras foram apropriadas, ainda que não representem uma qualidade de outrora.
Jorge Bodanzky, o homenageado da vez, participou ativamente das tardes no CineBrasília. Ele estava lá, nas sessões das 14h durante a semana, para debater a filmografia e sua trajetória desde os tempos em que era apenas um estudante, naquele sonho brasiliense de montar uma Faculdade de cinema na Universidade de Brasília. Ah, claro, os anos 60, tão delirantes. Assistir seu filme previamente premiado no mesmo Festival de Brasília, “Utopia e Distopia” foi ótimo. Escutá-lo, com sua incrível dicção, sobre os arquivos, suas técnicas, suas lembranças que ficaram, melhor ainda. Inclusive, debates improvisados, todos. Deu certo. O próprio Vladimir Carvalho, lenda do cinema distrital, apareceu, mesmo que atrasado. Dizia: “Eu normalmente falo que eu sempre chego atrasado”, na qual Bodanzky responde com um não gestual. Estar ali, contudo, foi o suficiente: representou. A equipe do evento programou também o subestimado “Compasso de Espera”, um deliciosíssimo romance político racial, que, de forma didática e cirúrgica, retira a ideia da inexistência do racismo no país, naqueles anos 70. O primeiro trabalho de Zózimo Bulbul, tão bem construído. A realização de Antunes Filho foi enterrada fora do cânone tão racista brasileiro.
Ainda dentro de características desse Festival de Brasília, entrou uma crítica presente em todas as sessões pela maioria dos realizadores: por mais que a inclusão tenha sido um foco constante do evento, houve também um esquecimento específico que criou atritos. A falta de opções amplas e simplificadas de acessibilidade. Libras foram pouquíssimos suportadas, sem opções de projeção de legendas ou algo próximo. Giovanni Venturini, ator do curta premiado por melhor ator, “Big Bang”, se manifestou verbalmente em seus agradecimentos. A reinvindicação foi clara, direcionada e muito bem conduzida. Existe sim essa necessidade de se pensar em acessibilidade no cinema nacional, uma vez na qual o embate direto está em justamente conseguir criar interesse populacional de se ver filme brasileiro. Apesar de tudo, os resultados até que impressionam: muitas das sessões do Festival que possuiu sala única estavam lotadas ou próximas disso. Revela uma força motriz à prova do futuro, claro, sem tirar a atenção do que distancia o público geral do dia a dia de cinema de rua.
O filme vencedor desse ano pela Mostra Competitiva do Júri Oficial foi “A Invenção do Outro”, documentário de Bruno Jorge. O cineasta decidiu, com apenas três câmeras e uma equipe de mais outro colega, acompanhar de perto a expedição humanitária que aproximou membros perdidos da etnia Corubo com suas isoladas populações. A obra conta com o protagonismo de Bruno Pereira, que foi assassinado em junho desse ano com o jornalista Dom Philips, justamente em uma de suas viagens no Vale do Javari.
Já pelo Júri Popular, “Rumo”, obra local com egressos da UnB, foi o escolhido pelo público. A sessão física foi de extrema importância para o feito: uma produção de baixo orçamento que mistura documentário com ficcional, sobre uma mãe que ingressa pela primeira vez em um curso superior graças à implementação da Lei de Cotas na universidade pública. Foram alguns minutos de palmas, espectadores aplaudindo de pé, etecetera. Uma noite, no fim, muito emotiva.
Pela Abracine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), o Melhor Longa-metragem caiu para “Mato Seco em Chamas”, que abriu o Festival de Brasília desse ano. Foi o grande vencedor da noite, levou sete Troféus Candangos e, de fato, dentro de toda a seleção realizada ali possuía uma maturidade visual e cinematográfica além. Adirley Queirós e Joana Pimenta fizeram uma obra que alcança novos níveis do cinema “ceilandense” (talvez Adirley mataria se chamássemos de cinema brasiliense). Não é à toa: conseguiram captar o interesse estrangeiro, exibiu a obra em Berlim, Lisboa, Toronto e Rio. É uma evolução, um grande passo para o futuro desse cinema que explodiu Brasília em 2014.
Os curtas-metragens também foram contemplados. O melhor curta pelo Júri Oficial foi “Escasso”, um mockumentary cuja temática está na fome e em seu uso político (sem que o político seja exposto). Rose, uma passeadora de animais, acaba apresentando para uma fictícia equipe de documentário sua nova residência, ocupada de uma antiga dona que não parece estar mais por ali. A comédia do curta é perfeita, com uma noção estética e rítmica impressionantes, sem esticamentos cômicos ou qualquer falha comum no gênero. O humor carioca também é assimilado dentro de toda a questão política na produção codirigida por Gabriela Gaia Meirelles e Clara Anastácia. A última, também protagoniza o filme.
A Mostra Brasília, que premia produções locais, escolheu “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte, para receber a gratificação de melhor filme. O júri popular rendeu à “Capitão Astúcia” também uma premiação.
Os prêmios especiais receberam uma atenção bem duradoura durante a cerimônia de entrega dos prêmios. O “Zózimo Bulbul”, que é justamente em homenagem ao grandíssimo ator, é concedido em uma parceria da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro e o Centro Afrocarioca de Cinema (presidido pelo sobrinho do artista). A láurea ficou para o longa “Rumo” e o curta “Calunga Maior”. “Nossos Passos Seguirão os Seus” ganhou a “Aquisição Canal Brasil de Curtas”, que acaba ganhando uma oportunidade de entrar na grade do famoso canal de TV e mais um prêmio de 15 mil reais. O Prêmio Marco Antônio Guimarães, que é entregue pela produção que se utiliza melhor de material de memória, foi entregue à “Diálogos com Ruth de Souza”, obra que fez parte da programação hors concour. O Troféu Saruê, que é tradicionalmente entregue pelo Correio Braziliense, foi concedido à “A Invenção do Outro”, pela memória do indigenista Bruno Pereira.
Agora, para aqueles que estão interessados em uma curadoria do próprio Vertentes do Cinema, aqui nós montamos uma lista de filmes interessantes para ficar de olho:
“Mato Seco em Chamas“, por sua maturidade narrativa e crescimento como cineasta de Adirley Queirós (e o contraponto que Joana colocou no longa); “A Invenção do Outro”, por deslocar o tempo para outro sentido cinematográfico se tratando da temática indígena, “Escasso” por misturar um humor carioca e temática necessariamente importante, sem perder a qualidade imposta dentro do fluxo de narração, trazendo o mockumentary para o lado político esquecido do Brasil; “Compasso de Espera”, pela incrível retomada de um subestimado longa-metragem que deveria se fazer mais parte do cânone brasileiro. Sempre que tenha a oportunidade, assista-o.
CONFIRA TODOS OS VENCEDORES DO FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO 2022
Mostra Competitiva – Longa-metragem
Melhor Longa-metragem pelo Júri Oficial: “A Invenção do Outro”, de Bruno Jorge
Melhor Longa-metragem pelo Júri Popular: “Rumo”, de Bruno Victor e Marcus Azevedo
Melhor Direção: Adirley Queirós e Joana Pimenta, por “Mato Seco em Chamas”
Melhor Atriz: prêmio dividido por Lea Alves e Joana Darc, em “Mato Seco em Chamas”
Melhor Atriz Coadjuvante: Andreia Vieira, em “Mato Seco em Chamas”
Melhor Ator: Carlos Francisco, em “Canção ao Longe”, de Clarissa Campolina
Melhor Ator Coadjuvante: Para o coro de motoqueiros, de “Mato Seco em Chamas”
Melhor Roteiro: Adirley Queirós e Joana Pimenta, por “Mato Seco em Chamas”
Melhor Fotografia: Bruno Jorge, por “A Invenção do Outro”
Melhor Direção de Arte: Denise Vieira, por “Mato Seco em Chamas”
Melhor Trilha Sonora: Muleka 100 Kalcinha, por “Mato Seco em Chamas”
Melhor Edição de Som: Bruno Palazzo e Bruno Jorge, por “A Invenção do Outro”
Melhor Montagem: Bruno Jorge, por “A Invenção do Outro”
Prêmio Especial do Júri: “Rumo”, de Bruno Victor e Marcus Azevedo
Mostra Competitiva – Curta-metragem
Melhor Curta-Metragem pelo Júri Oficial: “Escasso”, da Encruza (Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles)
Melhor Curta-metragem pelo Júri Popular: “Calunga Maior”, de Thiago Costa
Melhor Direção: Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles, por “Escasso”
Melhor Atriz: Clara Anastácia em “Escasso”, de Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles
Melhor Ator: Giovanni Venturini, em “Big Bang” de Carlos Segundo
Melhor Roteiro: Rogério Borges, por “Lugar de Ladson” de Rogério Borges
Melhor Fotografia: Yuji Kodato, por “Lugar de Ladson” de Rogério Borges
Melhor Direção de Arte: Joana Claude, por “Capuchinhos” de Victor Laet
Melhor Trilha Sonora: Podeserdesligado, em “Calunga Maior” de Thiago Costa
Melhor Edição de Som: Black Maria (Isadora Maria Torres e Léo Bortolin), por “Lugar de Ladson” de Rogério Borges
Melhor Montagem: Edson Lemos Akatoy, por “Calunga Maior” de Thiago Costa e “Nem o mar tem tanta água” de Mayara Valentim
Melhor filme de Temática Afirmativa: “Ave Maria”, de Pê Moreira
Mostra Competitiva Brasília
Melhor longa-metragem pelo Júri Oficial: “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte
Melhor curta-metragem pelo Júri Oficial: “Levante pela Terra”, de Marcelo Costa (Cuhexê Krahô):
Melhor direção: Thiago Foresti, por “Manual da Pós-verdade”
Melhor ator: Wellington Abreu, por “Manual da Pós-verdade”
Melhor atriz: Issamar Meguerditchian, por “Desamor”
Melhor roteiro: Juliana Corso, por “Virada de Jogo”
Melhor fotografia: Elder Miranda Jr., por “Manual da Pós-verdade”
Melhor montagem: Augusto Borges, Nathalya Brum e Douglas Queiroz, por “Plutão não é tão longe daqui”
Melhor direção de arte: Nadine Diel, por “Manual da Pós-verdade”
Melhor edição de som: Olivia Hernández, por “O Pastor e o Guerrilheiro”
Melhor trilha sonora: Sascha Kratzer, por “Capitão Astúcia”
Melhor longa-metragem pelo Júri Popular: “Capitão Astúcia”, do diretor Filipe Gontijo
Melhor curta-metragem pelo Júri Popular: “Desamor”, do diretor Herlon Kremer
Prêmios Especiais
Prêmio Zózimo Bulbul: “Rumo”, de Bruno Victor e Marcus Azevedo e “Calunga Maior”, de Thiago Costa
Prêmio Aquisição Canal Brasil de Curtas: “Nossos Passos Seguirão os Seus…”, de Uilton Oliveira.
Prêmio Marco Antônio Guimarães: “Diálogos com Ruth de Souza”, de Juliana Vicente
Troféu Saruê: à memória de Bruno Pereira, em “A Invenção do Outro”, de Bruno Jorge
Prêmio Abracine: “Mato Seco em Chamas”, de Adirley Queirós e Joana Pimenta e “Calunga Maior” de Thiago Costa