Como Dói Ser Povo
Entre dois mundos
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra CineBH 2022
Com uma estrutura acentuadamente melodramática, “Como Dói Ser Povo”, de Hugo Roncal, estremeceu a programação da 16ª CineBH e provocou uma série de inquietações no público, que prestigiou o debate com o curador da Mostra Diálogos Históricos, Pedro Butcher, e o pesquisador, professor, crítico de cinema, escritor e programador, Sebastian Morales.
Criando uma espécie de pêndulo dramático, que se desloca da cidade para o campo, um pouco na contramão do caminho clássico do cinema boliviano, nas palavras de Morales, o filme de Roncal é tão trágico quanto a condição latino-americana. Funcionando como uma espécie de representação do estado do subdesenvolvido, as paisagens são apresentadas como uma introdução ao universo que o espectador irá acompanhar ao longo da projeção. Contudo, a temática dos trabalhadores é introduzida como parte objetiva dessa paisagem, criando uma relação indissociável entre essa locação e os trabalhadores. Sem uma formulação acentuada de como as estruturas operam na sociedade de classes, o longa nos apresenta um flashback à área urbana, onde uma família rica debate sobre o futuro marido da filha. Roncal toma como ponto de partida concreto da representação, uma forma particularmente conhecida aos latinos, com largos preenchimentos de quadro, cortes objetivos entre ação e reação, zoom que procuram tensionar seus ambientes e dramas. Utilizando seus espaços como possibilidade de exposição do conflito de classes, a humilhação do trabalhador comum é escancarada a partir dos interesses da classe dominante e da impossibilidade de ascensão social do trabalhador assalariado.
Essa dinâmica funciona para arquitetar uma parte fundamental da linha melodramática do filme, que irá retornar ao espaço urbano de forma violenta. Mas se “Como Dói Ser Povo” precisa desse mapeamento dos conflitos em um primeiro momento, a representação dessas questões não acontece a partir de um desenvolvimento de largas subjetividades. Com exceção da trilha sonora, bastante presente ao longo da projeção, a objetividade documental do longa é excepcional para conflitar e justificar, uma forma cinematográfica que abre diálogos com o melodrama e com o documentário. Não por acaso a série de introduções da cultura popular, especialmente da música, são pontos de funcionamento dessa articulação trágica da história de um trabalhador que almeja a ascensão de classe e o prestígio social. Diante de um pesadelo enclausurado, onde o rancor toma conta do cenário de possibilidade de seus desejos, o filme lança ao espectador a possibilidade de compreender os delírios vulcânicos do não-lugar ocupado pelos latino-americanos, tomando como ponto de partida a discussão levantada por Stuart Hall sobre o lugar do terceiro mundista em um mundo “globalizado”, nessa estrutura que engole as margens da sociedade.
A descoberta de minério é a explosão de uma série de rituais, onde as imagens ganham efervescência e a música se torna protagonista em um jogo de sacrifícios e festividades, onde o minério encontrado é louvado. Onde a organização dos espaços e do trabalho se confundem, tal como uma paisagem política, a fala do protagonista levanta uma questão que expõe as fragilidades de sua classe social na cadeia de negócios: “Primeiro a nevada, depois a baixa do preço dos minerais”. Sua exposição a situações que são exteriores às suas vontades e esforços é tamanha que apenas nos gestos populares o filme pode descansar ou ser lúdico em sua narrativa. As danças e canções evocam uma tradição e cultura distinta da que é apresentada em um primeiro momento na projeção. Existe uma cena especialmente bela, onde o protagonista faz uma recepção em sua residência e a câmera passeia entre os panos e sorrisos que estampam a tela.
“La desdenhosa” funciona como uma chaga de sonhos frustrados, ainda que represente a inevitabilidade de sua condição. A fotografia explora a particularidade da região a partir da luz natural e pouca intervenção artificial, não apenas para se aproximar de uma maior representação da realidade, mas como um registro dessa vulnerabilidade, não apenas econômica, mas de uma exposição que é impossível ter controle.
“Como Dói Ser Povo” não é apenas melancólico por sua escassez e destino inalterável, mas por expor as entranhas de um mundo consumido pela miséria humana. Onde o ato de decidir sobre a própria vida é tão simbólico quanto inadiável. Essas impossibilidades, que nos leva à cidade novamente, é uma tragédia de retorno onde as memórias e a honra do que foi aprendido como os deveres e a força de um homem, torna-se um ato de sinceridade e afeto em meio à violência. Em uma data festiva, há a injustiça, o ódio de classe, a violência e, por fim, uma redenção que não poderia ser diferente. Um belíssimo filme que pode ter sido imaginado com uma estrutura ligeiramente diferente, já que o diretor não deixou um guião a ser seguido, apenas anotações, mas que mostra um trabalho de resgate histórico importantíssimo, tanto dos realizadores, quanto da curadoria da CineBH.