Cidade dos sonhos
Progresso sem inclusão?
Por Victor Faverin
Durante o Festival É Tudo Verdade 2020
Antes de ser taxada como o berço do novo coronavírus, a cidade de Wuhan foi premiada em 2015 como o município mais civilizado da China. Parte dessa conquista se deu pelo combate humanizado exercido pelo Comitê de Administração Urbana frente ao comércio de rua que estava fora dos padrões estabelecidos pelas diretrizes locais. Essa é a história contada pelo documentário que compõe a Mostra Competitiva do Festival É Tudo Verdade, “Cidade dos Sonhos” (2020), dirigido por Chen Weijun. A narrativa da obra é centrada quase inteiramente na família de Wang Tiancheng, vendedor de frutas e roupas cuja resistência em abandonar o ponto onde estabeleceu a sua barraca foi motivo de diversas negociações e disputas pitorescas com as autoridades.
Esse combate inusitado entre o prego e o martelo – analogia feita pelos próprios fiscais – decorre, majoritariamente, da personalidade explosiva e muitas vezes fatalista do comerciante. Ao menor sinal de interferência em seus negócios, Tio Wang, como é nomeado pelos servidores da prefeitura, tira a camisa, deita no chão, grita e até dá tapas no rosto dos inspetores. Tais arroubos são encarados pelo documentário e pelos próprios trabalhadores como os de um avô indignado com as malcriações dos netos e faz com que nós, brasileiros, lembremos exatamente do oposto: a ação muitas vezes truculenta do Estado e seu braço armado contra os chamados camelôs situados nas principais cidades de nosso país.
Tal comportamento neutro e pacífico das autoridades de Wuhan, ainda que seja influenciado pela presença das câmaras, é reforçado pela necessidade quase diária que os representantes da autarquia municipal têm de solicitar aos vendedores que mantenham dentro das lojas e não nas calçadas as suas mercadorias. Por mais que torçamos para o lado mais fraco da força, a tolerância e paciência demonstrada por esses agentes do poder simpatiza. O diretor enaltece o modo compassivo desse trato com closes em rostos amigáveis e de expressão compassiva, ainda que possam estar revestidos de sarcasmo. A decisão fica para o espectador. Muitas vezes, nem as multas que eles aplicam são respeitadas. Mesmo quando a força é utilizada em “Cidade dos Sonhos”, é feita para conter a ameaça iminente da agressão que viria do Tio Wang, que acusa constantemente os inspetores de corrupção por aceitarem subornos de outras “bancas e lojas maiores e mais ricas”.
Essas acusações, porém, não são minimamente apuradas pelo documentário. A impressão que dá é que para Chen Weijun, o personagem principal não passa de um palhaço a divertir multidões com sua indignação caricata. Por vezes, tal fúria é acompanhada de trilha sonora que evoca a desenhos animados, como à espera da próxima artimanha a ser realizada. Talvez essa seja a maior falha do documentário. No entanto, é difícil imaginar que um filme com essa temática veria a luz do dia em um regime “fechado” se, de fato, colocasse o dedo na ferida, ainda mais pela câmera transitar de forma livre na repartição pública onde trabalham os fiscais. Não fosse pela naturalidade crua com que decorrem as cenas e diálogos, “Cidade dos Sonhos” poderia ser, facilmente, qualificado como um documentário “chapa branca”. E talvez o seja. Antes disso é, em alguns momentos, enfadonho pela repetição.
Por outro lado, não deixa de mostrar a casa onde vive o comerciante, com sua pobreza e adversidade impregnada em cada parede, como em “Parasita” (2019). Traçando um paralelo com o filme sul-coreano vencedor do Oscar do ano passado, não é difícil imaginar que a família Tiancheng poderia arquitetar um golpe para sair da base da pirâmide e deixar de ser oprimida. O desempenho notável em matemática da neta de Tio Wang poderia ser útil no plano, bem como o desempenho performático dele próprio. Falando da família, vem da esposa uma das frases mais destacáveis de “Cidade dos Sonhos”: se as árvores ocupam as calçadas, porque eu também não posso? Ainda que o raciocínio da matriarca não seja completado, é de se pensar que, assim como a flora beneficia a população com sombra e ar limpo, a barraca de frutas e roupas fornece aos moradores da cidade outros bens também indispensáveis.
Essa contradição vai contra, inclusive, ao discurso moderno de que “as cidades são feitas de pessoas e para as pessoas”. Wuhan parece ter optado por esquecer-se, mesmo que momentaneamente, do passado, em que camponeses, como Tio Wang, foram indispensáveis à alimentação de soldados e civis para dar lugar à modernidade trazida por edifícios imponentes. Mesmo assim, ainda que tenhamos uma clara ideia de qual lado da história terá de ceder e o público talvez se irrite com as atitudes muitas vezes intransigentes do comerciante, o final traz uma conclusão satisfatória de que é possível conciliar progresso sem se esquecer das antigas gerações que contribuíram para que ele ocorresse.