Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos
Irretocável
Por Vitor Velloso
Festival de Cannes 2018; Festival do Rio 2018
Há obras que a compreensão do espectador, enquanto receptor, não permite a internalização de grandezas extra-cinematográficas na possível percepção. São verdadeiras estruturas que vão além da objetividade, do texto e da imagem. “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” consegue atingir todas as camadas humanas, de uma maneira tão precisa que saímos da sessão esgotados e de alma lavada. Como isso se concretiza? Bom, nenhuma criação intelectual atinge o grau da comunicação e dialética por si, ela depende de um interlocutor, alguém que faça a leitura das proposições do autor.
O filme em questão enquanto potência cinematográfica é estonteante. São planos que capturam uma essência que descentraliza a etnia com uma organicidade poucas vezes presenciadas. A busca do protagonista em compreender as mudanças que vêm se manifestando a ele enquanto indígena, é de uma honestidade ímpar. Não há de forma direta a visão construída da pele do índio como um corpo político por si só, mas sim de uma formalização daquele universo que nos é estranho, como uma mea culpa eurocêntrica, à algo absolutamente prosaico, ainda que de uma complexidade invariável. A capacidade de transmissão desses sentimentos está diretamente ligada a direção de João Salaviza e Renée Nader Messora, quase sempre fixa, a câmera cria uma observação que busca ser o menos predatória e agressiva, por uma questão de respeito cultural e distanciamento de mundos, porém, em sua misancene busca um convívio íntimo, facilitando o espectador de se reconhecer em todas as questões humanas que nos são apresentadas.
A presença do conteúdo místico ligado diretamente na trama é realizada com uma carpintaria milimétrica, pois, o mito oferecido ao espectador mescla uma presença carnal e espiritual com uma potência que apenas os índios são capazes de compreender. Desta maneira, Ihjâc (Henrique Ihjãc KRAHÔ), que está descobrindo suas habilidades de pajé de forma precoce, é obrigado a enfrentar um de seus traumas, a morte de seu pai. O falecido lhe diz que deseja o ritual completo de sua despedida. O pedido lhe assusta mas ele o aceita, ao mesmo tempo, não consegue aceitar seu dever enquanto pajé, desta forma sai da aldeia, buscando um hospital, acreditando estar sentindo dores localizadas na região do peito, nesta transição de ambientação algumas proposições dos cineastas lembram “Uirá – Um índio em busca de Deus” de Gustavo Dahl.
Porém, a ideia do nativo estar com tais sintomas, pode nos soar meramente caso clínico, e essa paradoxalidade do acontecimento é mantida por grande parte da projeção, de forma compreensível, pois, dessa maneira o espectador é intimado a refletir sobre a própria origem da imagem que vê, de sua própria espiritualidade, se a tiver. Este exercício de despir-se diante da obra, é parte essencial da arte como comunicação, mas vai além, é peça fundamental do processo etnográfico. A necessidade de horizontalizar a discussão vêm de um desejo singular do filme. Buscando uma internalização de conceitos cinematográficos, à linguagem e uma refrega justa entre a visão etnocêntrica e os verdadeiros nativos das terras brasileiras que estão sendo esquecidos, abandonados ou jurados de morte, inclusive por futuros presidentes.
O longa é um ode às culturas extintas e em extinção. Porém discussões políticas são apenas parte do pano de fundo da obra, que se fortalece ainda mais no terceiro ato. No retorno à aldeia “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” libera todo seu potencial. Em um plano inesquecível, vemos o início do ritual que irá sacramentar o fim da passagem de seu pai na terra, vemos o pajé dançar e cantar e com uma sucessão de planos acompanhamos a concretização do processo, que culmina em uma das cenas mais lindas do cinema contemporâneo, Ihjãc está olhando às pessoas e uma tora em chamas, enquanto ouvimos os lamentos dos aldeões e seu rosto inexpressivo sendo iluminado pela labareda. A força do enquadramento nos força pedir o fim do filme. E quando ele parece ir por um caminho que o fará cair no lugar comum, chegamos ao último plano, que remete à primeira cena, desta vez dando um sentido concreto a tudo que acompanhamos até ali. E indo além em encerrar o debate acerca do misticismo presente na mise-en-scène, dando um ponto final à trajetória do personagem e a todo o arcabouço estético que nos é proporcionado.