Chico Rei Entre Nós
O passado não tão distante
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de São Paulo 2020
“Chico Rei Entre Nós” de Joyce Prado é um documentário que vem cumprir uma lacuna na cinematografia contemporânea brasileira. Falar diretamente acerca do imaginário que envolve “Chico Rei” e suas camadas mais densas na identidade cultural de um povo. A figura central, protagonista onipresente do documentário, é por si só uma História absolutamente imensa que deveríamos debater com mais frequência nos meandros nacionais, em escolas e meios didáticos.
O filme se concentra em suas representações no imaginário popular, assim como na História factual, tratando de reverberações temporais e materiais que se deram ao longo dos anos no Brasil. Em meios dialéticos, é possível reconhecer a figura norteadora como um ponto basilar na cultura negra brasileira, não à toa Joyce Prado concentra esforços em traçar a partir do popular toda essa narrativa envolvendo Chico. E é por isso que parte do exercício didático, em estrutura, pode parecer brevemente deslocado em determinados momentos, pois não se apega ao conhecimento acadêmico como fonte primordial. Assim, o documentário fertiliza uma oralidade na arte Histórica como esse fio condutor máximo para que possamos acompanhar cada momento temporal, mesmo que com paralelismos imediatos. Essa complexidade na estrutura, gera uma lentidão progressiva na experiência, já que não segue à risca o conforto de um pragmatismo expositivo, pelo contrário, adota essa exposição popular como a verdadeira frente de construção do imaginário.
Apenas por essa razão “Chico Rei Entre Nós” merece destaque nas produções recentes brasileiras, por recusar aliar-se ao alienante pensamento tacanho e formulaico que vemos constantemente, pois encara a base material para a discussão de sua História como uma ponto de reflexão ímpar, mas plural, para seccionarmos essas representações Históricas e culturais que se fixaram em Minas. Desta maneira, o longa perpassa por diversos lugares à procura dessas narrativas, quando não as encontra imediatamente em território. O espaço cultural vira uma região limítrofe de fronteiras entre os fatos e esse imaginário, e é por onde caminham as forças e as fragilidades do filme. Essa proposição nos dá uma tonalidade absolutamente direta, material, plural, totalizante de um reconhecimento dessa cultura e dessa História, mas fragmenta em absoluto para uma análise direta de determinadas perspectivas. É louvável o exercício proposto pelo filme, mas o preço está diretamente ligado ao seu ritmo e à lentidão que atravessa o interesse do público pelo que é exibido.
A montagem busca desencadear reações possíveis para conseguir uma organização mais harmônica para o compilado político e cultural, mas a tarefa é árdua. Existem paralelismos longuíssimos em uma possível centralização dessa História, que acaba comprometendo drasticamente a força política que o documentário possui. Mas os méritos são igualmente destacáveis. Para além do esforço de agregar essas narrativas múltiplas e condensar como frente organizada, o longa consegue relações sólidas com movimentos políticos, culturais e religiosos a partir de seu protagonista. Assim, o tecido temporal, dilatado pela exibição, torna-se brevemente mais compacto e aproxima o público dessas frentes contemporâneas que carregam consigo o legado e o nome de Chico Rei. O título do filme, “Chico Rei Entre Nós”, propõe uma redução das perspectivas para esse ambiente totalizante e material que se dá a partir da própria linguagem.
E isso é particularmente difícil, pois trata de um movimento de cisão com seu objeto imediato, ainda que o faça como resgate. Essa dialética já proposta na própria relação do axioma da identidade e da cultura, com essa política, que se vê representada aqui em bonés, bandeiras, organizações etc, encontra seu lugar em representações positivas no ambiente político contemporâneo. Assim, a História se faz diante da objetiva (enquanto filme), não o contrário, evocando um passado como ancestralidade, o lugar da História, o debate material da mesma e suas representações em movimentos. É uma organização propriamente dialética, totalizante, que não se deixa levar pela formalização do cinema como essa vulgaridade nas representações.
“Chico Rei Entre Nós” é um filme que consegue feitos astronômicos e árduos, que acaba pagando um preço caro pelos acertos, mas sem dúvida, se torna destaque nos festivais e mostras de cinema. É necessário torcida para que haja distribuição digna nos cinemas brasileiros e acende uma luz para Joyce Prado, que inicia, com personalidade, sua carreira nos longas.