Cats
Embrulha e Manda
Por Jorge Cruz
Imagina que você precisa entregar aquele trabalho de escola – ou de faculdade – que o professor agendou há meses a data final. Durante todo o período, você bancou que naquele dia a apresentação seria realizada e seria submetida ao julgamento criterioso da plateia. Horas antes da aula, pouco mais da metade do que seria próximo de um trabalho digno está finalizado. Você adaptou tanta coisa que o conceito original se perdeu e parece que você entregará um protótipo das suas intenções. Você aposta tudo em sua boa reputação, construída a partir de trabalhos de períodos passados que renderam as maiores honrarias da instituição. Faz o que pode para cumprir o prazo e vai com tudo para a aula. Você é Tom Hooper e o seu trabalho é a adaptação cinematográfica do icônico musical londrino, consagrado na Broadway, chamado “Cats“.
Andrew Lloyd Webber fez desse projeto sua obra-prima, marcada por ter sido, ao longo dos anos 1980 e 1990, a peça mais longeva do famoso conjunto de teatros novaiorquino, superado apenas por outra peça do britânico, “O Fantasma da Ópera” (2004). Por sinal, outra adaptação que desapontou muita gente. Quando a Universal Pictures deixou na mão de Hooper o barco para ser tocado, não parecia que o catástrofe seria desse tamanho. Com um orçamento de 95 milhões de dólares e nomes tão díspares no elenco, parecia que daria caldo. Uma dama do cinema inglês como Judi Dench, um talento incontestável em filmes do gênero como Jennifer Hudson, artistas pop de sucesso como Taylor Swifft e Jason Derulo e um dos astros mais badalados de Hollywood como Idris Elba. Se um elenco de apoio perfeito pudesse ser montado, se aproximaria muito do que os produtores conseguiram.
“Cats” estava agendado para estrear no Natal de 2019 há muito tempo. Ninguém esperava um ano tão recheado de bons filmes, então não era loucura cotar Tom Hooper e sua obra para a temporada de premiações. Com um Oscar na estante por “O Discurso do Rei” (2010), seus projetos seguintes dividiram opiniões, mas não passaram despercebidos pelo grande público. “Os Miseráveis” (2012), uma adaptação bem mais difícil e também problemática, parece uma bela tarde no campo se comparado a “Cats”. Só resta aos analistas, muitos desmotivados em assistir a um produto flagrantemente inacabado, juntar os cacos e pensar o que levou um dos musicais mais conhecidos da história recente do teatro, virar um filme que – em sua cena inicial – tem takes em que a maquiagem inserida pelos efeitos visuais simplesmente é esquecida.
A resposta não é tão difícil de ser encontrada. Em uma época onde o espectador precisa ser constantemente estimulado, em que tudo parece ser histórico e que o countdown é mais importante do que a experiência em si, adiamentos e cancelamentos são mais abomináveis do que um meme humilhante. Havia na sessão na data de estreia de “Cats” dois – talvez três – tipos de público. Um grupo que, sem dúvida, estavam ali para se divertir com o hype negativo do longa-metragem – aplaudiram ao final, depois de músicas risadas festivas. Outro que, aparentemente, possuía algum vínculo com a marca Cats. Assistiram à peça, conhecem alguma música ou apenas ouviram falar e, diante do apreço por um musical, confiaram sua noite de entretenimento a Tom Hooper. Por sinal, o que o filme faz é um desserviço a esse patrimônio que rende milhões à Broadway há quase quatro décadas. Fica a dúvida se havia um terceiro grupo, de pessoas desavisadas no meio disso tudo.
Pois é justamente dentro da lógica de mercantilização das emoções que “Cats” foi atirado aos leões. Um povo voraz pela diversão, disposto a pagar mais de 10% de um salário mínimo em um par de ingressos e um combo de pipoca. Aliás, como é interessante ver que, mesmo com quinze ou vinte minutos de comerciais e trailers, muita gente chega mais de meia hora depois do horário agendado, com o filme começado, apenas porque estava na fila da pipoca. Porque o que se passa na tela, por vezes, é um mero detalhe. Portanto, não devemos julgar “Cats” apenas por sua incompletude e ineficiência. Houve quem saiu da sessão perguntando a quem o acompanhava se “gostou do filme”. Gostar é uma opção sempre, por incrível que pareça – e talvez muita gente nunca vai saber o que de fato achou. O senhor da minha frente não queria deixar as mensagens no seu Whatsapp se acumularem ao longo dos infindáveis cem minutos de filme.
Se em 2019 toda a identidade visual de um personagem foi alterada pelos comentários em redes sociais quando do lançamento de um teaser de “Sonic: O FIlme“, nada deveria nos chocar. Essa inobservância da receptividade do espectador transforma “Cats” em algo histórico. É inconcebível que um produto audiovisual tal qual está sendo exibido nos cinemas ganhasse o mercado antes da digitalização da produção e da transmissão. Seria preciso trancar todos os executivos do estúdio em um cativeiro e produzir centenas de cópias para enviá-las para salas de todo o planeta antes que algum responsável assistisse a cinco minutos do filme. Não há unidade estética e momentos nitidamente incômodos são facilmente percebidos. Um deles é a manutenção de mãos e pés humanos e outro é a falta de lógica no uso de roupas ou não. É até difícil entender o que é uma falha de produção ou uma escolha mal sucedida da equipe. O personagem de Ian McKellen usa luvas, por exemplo.
Voltando à metáfora da apresentação do trabalho da faculdade, o alinhamento de um projeto como esse bastaria respeitar os requisitos mínimos de um filme de gênero. Hollywood há quase cem anos faz uma maquiagem básica em um tablado e dali entrega um musical de qualidade. Até o início da Era de Ouro era apenas um monte de madeira pintada ao fundo com a desculpa de ser um cenário. Muitos deles sequer escondem o taco do chão e as sapatilhas especiais para sapetado. Em “O Retorno de Mary Poppins” nem foi tão ousado assim replicar os cenários da Rua das Cerejeiras. Os responsáveis por “Cats” não se dignaram sequer a construir um esboço de ambientação, apostando quase tudo o que não é a cabeça dos atores em CGI. Há quinze anos, “Capitão Sky e o Mundo do Amanhã” foi outro filme de gênero recheado de bons atores que gerou um filme que foi para a sarjeta cometendo os mesmos erros. O ato final de “Cats” assume sua condição de espetáculo e, tal como muitos musicais, se passa quase todo em cima de um palco. Mesmo assim tentaram adicionar uma arte deveras tosca. Funciona muito mais o uso de cordas para impulsionar os atores, técnica que chocou o mundo em 2000 com “O Tigre e o Dragão” e hoje é manjada até pelas crianças.
Isso porque buscar realidade na arte é um jogo perdido. Ao assistir “Cats” o espectador quer envolvimento, seja por qual via for. O longa-metragem não ter uma história definida – ele é na verdade uma espécie de show em que a cada momento um novo personagem entra e canta sobre si – também não é a grande questão, apesar de ser a mais atacada pela crítica. É uma tática de “caixa dentro da caixa” que, a serviço de um objetivo, poderia ser muito divertida. O que afeta a experiência é que não há quase nada ali que nos provoque. Poderíamos ver todos de collant verde em um ambiente totalmente verde, cheios de marcadores de captura de performance. “Dogville” diz muito sem precisar de cenário e ficamos de bem com isso. O que incomoda são os movimentos totalmente engessados, as adições de efeitos em simples cenas de dança, o sapateado maquiado com truques de montagem. É a parte instrumental das canções ser engolida pelo canto, parecendo que estamos em um restaurante com videokê.
Quando dizemos “quase nada” é que há alguns pontos que merecem destaque positivo. As canções de Rum Tum Tugger (Jason Derulo) e Bombalurina (Taylor Swift) possuem trabalho de iluminação e um casamento de voz e melodia muito mais harmoniosos do que o restante da obra. São peças independentes, provavelmente por influência dos próprios artistas, que não colocariam esse bloco na rua sem fazer uma política de redução de danos. Também independente de qualquer outro fator é o trabalho de Jennifer Hudson. Com “Memories”, a mais famosa música da trilha de “Cats” ela ignora todo o constrangimento travestido de filme e consegue emocionar a plateia. É aquela aluna que pegou a parte que lhe cabia, salvou seus slides dentro do pen drive e conseguiu fazer uma apresentação descolada do seu grupo. Dá para ler “help” dentro de sua íris, pedindo para a indústria cinematográfica norte-americano lhe dar um bom papel em um projeto não meramente promissor. O restante de “Cats” é deboche, é afronta, é o “embrulha e manda” mais intragável que Hollywood nos jogou goela abaixo nos últimos tempos.