Carvão
Família em cinzas
Por Pedro Sales
Festival de Toronto 2022
No interior, todo mundo conhece todo mundo. Os vizinhos entram nas casas sem a menor cerimônia ou mesmo convite. O público e o privado se confundem nesse contexto, e a proximidade na comunidade quase não deixa margem para segredos. Esconder algo é confrontar a regra não escrita do compartilhamento das vidas. Em “Carvão“, filme dirigido por Carolina Markowicz, estreante em longas-metragens, uma família, por meio de um pacto mefistofélico, esconde um segredo inimaginável para a sociedade pacata e tradicional interiorana. A diretora mantém o interesse através de uma trama que se renova em tela constantemente. Quando o espectador imagina entender o que se passa em cena, ou quando tenta adivinhar o que vem a seguir – quem nunca? –, uma surpresa se apresenta e destrói o pensamento inicial em que o público há pouco se apoiava.
Na introdução, a obra consolida dureza realista em sua abordagem, existe uma frontalidade e franqueza nas interações dignas de espanto. O filho Jean diz à mãe Irene (Maeve Jinkings) para não desligar o rádio porque o “vô gosta”, o garoto acrescenta que quando desliga, ele começa a virar os olhos. “É derrame”, responde ela. Sem meias palavras e com nenhum traço de eufemismo. Esse aspecto se repete quando a enfermeira Juracy (Aline Marta Maia) troca o cilindro de oxigênio do idoso acamado. Irene se alegra, diz que ele vai respirar melhor. A agente de saúde rebate, não há perspectiva de melhora inalando pó de madeira podre. Dessa forma, em razão da impossibilidade de recuperação, a enfermeira propõe a Irene e seu esposo Jairo (Rômulo Braga) uma troca vantajosa. Ao enfermo, o descanso eterno. Para eles, dinheiro para refugiar um homem que precisa de abrigo.
A direção faz questão de mostrar por meio de planos gerais o senso de isolamento dos personagens de “Carvão“. A família não está no centro geográfico do seu estado, tampouco do município. Eles vivem em uma propriedade rural, com algumas poucas galinhas e com a carvoaria, fonte do sustento familiar. O único contato exterior é com a vizinha Luciana (Camila Márdila) e sua família. Teoricamente, o fato de estarem mais distantes dos outros garantiria segurança para abrigar o traficante argentino Miguel (César Bordón) nessa rede de acobertamento. A teoria, contudo, é inviabilizada pela presença dos vizinhos, o que gera uma faísca de risco para a Irene e os seus. Para mim, um dos problemas do longa é não explorar melhor esse perigo. Algumas cenas em que intrusos ficam próximos da verdade, não há manipulação suficiente das emoções para gerar tensão no espectador, não há como temer uma possível revelação.
Além da paisagem natural de interior, a iconografia cristã onipresente em “Carvão” traz a força do discurso religioso na sociedade tradicional brasileira. A música do rádio é religiosa, por exemplo. Na casa, imagens e crucifixos estão espalhados, evidenciam a importância dos ícones para a família. Um exemplo mais claro se dá no momento em que Irene conversa com o padre, ela parece se desculpar pela eutanásia forçada, entretanto, como forma de compensar seu pecado, ela se compromete em contribuir mais com a paróquia. De Deus nada escapa. A presença divina, ou pelo menos de objetos religiosos, coexiste com os “desvios” das pessoas da casa. Miguel prepara uma carreira de cocaína no quarto, do lado há a imagem de Nossa Senhora. Quando Jairo tem uma discussão após um quase momento tórrido, Markowicz filma internamente a porta da casa com um pequeno crucifixo na parede, e a conversa fora do campo. Até no momento de maior tensão do longa, existem traços cristãos – a Santa Ceia na mesa. A repetição desses motivos religiosos, portanto, é uma forma visual de demonstrar como a religiosidade molda e permeia as pequenas comunidades.
Em contraste a isso, destaca-se também a tensão sexual latente de “Carvão“, pontuada em momentos-chave. A presença desse homem desencadeia diferentes reações em cada um na casa. Para o garoto, é alguém com quem jogar futebol, Miguel carrega o River Plate em uma corrente, inclusive. Jairo vê no homem alguém que contesta sua autoridade como homem da casa e que o instiga, e Irene, que já lida com o distanciamento conjugal, se insinua para o estranho sob seu teto. Nesse aspecto, existem ecos de outras obras, como “O Estranho que Nós Amamos” e “Teorema”, de Pasolini. A solitária mulher procura se aventurar, oferece vinho, espia pela janela e coloca uma foto sua quando foi Miss na parede do quarto do homem. A ferocidade das investidas é nula, pois não há interesse mútuo. A estadia de Miguel significa também outra coisa: dinheiro. E isso muda também as pessoas da casa. Jairo se acha no direito de presentear, o que levanta suspeitas acerca da origem do dinheiro e mesmo de suas intenções com o presenteado. Esconder alguém, faz com que Jairo se revele mais. Afinal, seu segredo não é mais chocante que o da família. O menino Jean aproveita o dinheiro na cantina e, além disso, presenteia o hóspede.
“Carvão” propõe um enredo de graduais revelações e é bem efetivo em manter o público inquieto com os desdobramentos. A diretora Carolina Markowicz, extremamente segura em estabelecer uma decupagem inventiva, com o uso da câmera na mão, bons planos de estabelecimento e um campo e contracampo fluido, às vezes feito com uma só câmera, tem alguns problemas para brincar com o suspense em curto prazo. A trama toda é salpicada por incerteza e tensão, contudo, em momentos que ela poderia explorar a ansiedade e o quase-evento, não há a potência suficiente. Ao analisar os impactos do estranho no núcleo familiar, por outro lado, Markowicz brilha. O enfrentamento do novo, aliado à perda do antigo, queima lentamente os laços familiares, deixa a família em cinzas, tendo que lidar eternamente com a consequência dos atos.