Carne
Corpos orgânicos, animados e expostos
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2019
Carne é tanto tecido de reconstituição dos animais, quanto alimento de sobrevivência. Sua importância é biológica e seu resultado, cognitivo. Diferentemente dos outros, a carne humana, que está revestida de pele, não é comestível, apenas metaforizada como antropofágica, e não possui etnias, raças e gêneros. É vermelha e visceral. Em “Carne”, curta-metragem exibido no Festival do Rio 2019, cinco mulheres narram histórias e impactos existenciais sobre seus corpos, provando assim que tudo é imagem e que carne e corpo são inseparáveis.
“Carne” conta-se pelo arte da animação, gerando cinco diferentes técnicas, como a de massinha, que não só permite uma suavização do tema, mas também simboliza o orgânico. O contato direto. O roteiro divide-se em independentes capítulos-esquetes um do outro, com o indicativo de tipos de carne: crua, mal passada, ao ponto, passada e bem passada, que metaforizam respectivamente épocas-idades da vida: a infância, a adolescência, a fase adulta, a meia-idade (pós-adulta-pré-velhice) e a velhice.
Cada história problematiza uma questão pululante e frequente da mulher. A gordofobia, que “vê o corpo gordo como transitório”. A menstruação, sinal de que a menina fica “mocinha” e que “sangra e não morre”. O racismo com a hiper-sexualização do corpo negro, que já “nasce sensual”, e a transfobia, a travesti negra que é a “última na pirâmide da tolerância” e que precisa ter uma “maior disciplina para tudo que faz”. “A vida de uma mulher trans está sempre por um fio; a minha presença é uma presença”, diz. O preconceito LGBTQIA+ de uma lésbica que entra na menopausa, nos “hormônios” e na “mudança em ser mulher”. “Posso ficar com meu útero mesmo não tendo filhos?”.
Na última, temos a atriz Helena Ignez, que narra a relação com seu corpo aos 79 anos (a “limitação das liberdades” e ser dona do corpo e ainda o transformar nessa idade”). Nesse momento, o curta sai da animação e entra na técnica da colagem ao inserir o trecho do filme “Copacabana Mon Amour” (1970), de Rogério Sganzerla, em que a personagem da atriz grita “Tenho pavor da velhice”.
“Carne”, realizado e roteirizado pela diretora brasileira Camila Kater (de “The Black Marker”), constrói uma sólida-madura ponte-analogia-representatividade da dor física-psicológica com a representação figurativa do propósito da carne. O filme está qualificado para concorrer ao Oscar® 2021 na categoria de curta-metragem documental e também está na shortlist dos Prêmios Goya na categoria de curta de animação.
A relevância de um filme como “Carne” se torna ainda maior se levarmos em conta que as mulheres são minoria quando se trata de animações. Apenas 3% dos filmes do gênero foram dirigidos por mulheres nos últimos 12 anos – na televisão, o percentual sobe para 13%, mostra um estudo promovido pela Universidade do Sul da Califórnia em parceria com a ONG @wia_animation. Entre mulheres não caucasianas, a disparidade é ainda maior: apenas quatro dirigiram algum projeto no cinema ou na televisão, todas asiáticas.
“Acredito que a animação confere aos depoimentos uma dimensão sensorial muito rica e que pode ser uma linguagem maravilhosa para abordar temas sensíveis. Há uma conexão especial entre as histórias reais e as animadoras, e ela está, de alguma forma, impressa no filme. CARNE é um trabalho colaborativo, feito a partir de uma equipe de 95% de mulheres, que me trouxe confiança como diretora e animadora, mas também me deu a oportunidade de conhecer essas mulheres incríveis e aprender muito com elas. Não posso dizer que estou totalmente confortável com meu corpo hoje, mas certamente o respeito e o admiro mais”, conclui a diretora Camila Kater.
Desde ontem, dia 12 de janeiro, “Carne” está disponível em formato online e gratuito no New York Times Op-Docs, uma plataforma gratuita de alcance global do jornal estadunidense que reúne os melhores filmes de não ficção do mundo.