Candango – Memórias do Festival
Saudosismo, cinema e documento político
Por Fabricio Duque
Durante a Mostra de São Paulo 2020
Estreante na direção de uma longa-metragem, o realizador brasiliense Lino Meireles cria em seu documentário “Candango – Memórias do Festival” uma saudosista arqueologia ao despertar memórias do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (desde 1965, é o mais longevo do país), que, por sua vez, traz em seu troféu a simbologia do Candango. Este termo, usado para definir trabalhadores que migraram para Brasília, a “Eldorado de um mundo melhor”, pode também aludir a uma união permitida e estimulada de obras com múltiplos temas e narrativas e de seus cineastas de fora, que participam temporariamente com outras geografias a fim de perpetuar a História cinematográfica deste festival e do próprio Brasil.
“Candango – Memórias do Festival” imprime narrativa, cadenciada, ritmada, que conecta assuntos e lembranças contadas. Um filme que causa nostalgia e é, acima de tudo, um documento cinéfilo de cunho político-social. Por curiosidades e “tretas” (discussões acaloradas e passionais de “luta” pela ideia e ideologia), resgata-se a anamnese da arte visual brasileira por dentro de um dos festivais mais politizados do Brasil. Nós, espectadores, sentimos um apego ao passado, de uma época que muitos não tiveram a oportunidade de viver, inclusive o diretor daqui, ainda não nascido. Dessa forma, todos esses contos-causos geram o querer urgente e imediato de ver e/ou rever os filmes. Tudo por sua organicidade contemporânea importada desse pretérito.
O documentário apresenta-se sinestésico, porque aproxima a nossa emocionalidade mais inerente e íntima, traduzida quase como à flor da pele, personificando em tela a sensação dos jovens em ebulição imediatista. Não só nos é estimulado o desejo de se estar de qualquer maneira na próxima edição do Festival de Brasília, como a de beber a potência transposta. Para qualquer um que ama cinema, “Candango – Memórias do Festival” é um júbilo. Uma meta-cinefilia.
Uma ode ao amor incondicional pela sétima arte, pelo cinema brasileiro e por Brasília. Candango também unifica casos e fatos de forma libertária, divertida, politizada, antenada, perspicaz, sacana, espirituosa, ingênua, tudo com a liberdade máxima do discurso e da opinião, reiterando a obrigação de se manter a essência do Cinema Brasileiro. Aplaudir e/ou vaiar este filme é mais que permitido. Até porque é praticamente o lema-máxima da experiência de ter participado do festival. O que não se pode de jeito nenhum é ficar indiferente (o pior das reações) e ser protocolar. Sem a transgressão do pensar, questionar, argumentar e desconstruir o cinema e seus filmes no Festival de Brasília, nós não teríamos a elevação de uma qualidade (que aprende especialmente na crítica e no grito, vide Glauber Rocha), tão ativa, hiperbólica, pulsante e pungente, que referenciou e ressignificou o olhar crítico sobre uma das artes mais completas que existe. “Candango – Memórias do Festival” é também um filme descolado, porque capta a força de uma época construída. E nesse mundo de concreto, nos apresenta o coração. Uma emoção de felicidade extasiante em transformar o cinema como perpetuação na infinitude do existir, fornecendo todo o merecimento.
Contudo, sabendo que não há filmes perfeitos, citando uma das frases do documentarista-montador Eduardo Escorel, agora também youtuber, há aqui uma tentativa de adulterar o conceito (discurso) com a embalagem (forma), objetivo de ampliar o público. Sim. Quando a edição constrói em seu início um ritmo de montagem eletrizante (desordenando o equilíbrio do que vem a seguir), acaba desvirtuando nossa percepção para agradar a filosofia empírica. É como se a narrativa precisasse apelar a gatilhos padronizados da construção, de propósitos facilitados em fazer o espectador adentrar na trama. É uma decisão arriscada. E ainda que seja rápido este preâmbulo “tapete vermelho”, acarreta-se ansiedade (e ficamos “baratinados”) com a quantidade de telas, personagens (interlocutores) e informações demais para colar e fundir. O que estimula a esse crítico “viajar” e perguntar o porquê de se inserir estrutura jornalística em um documento cinematográfico (como entrevistados “silenciados”). Será este o real objetivo? De se mostrar como uma metáfora crítica política-comportamental? O silêncio para reverberar toda a censura imposta durante os anos no Festival de Brasília?
A percepção do parágrafo acima não invalida em nada o filme. Que consegue traduzir sua importância histórica e sua relevância, principalmente pelo olhar curioso e respeitoso (de nunca entrar em briga com seu entrevistado, e assim conseguir “confissões”, “segredos” e “fofocas” dos bastidores “selvagens”, entre jornalistas e realizadores). “Candango – Memórias do Festival” é uma obra para ser apreciada (talvez até regurgitada – pela antropofagia das ideias e antropologia de uma época), especialmente pela produção de 61 horas de entrevistas (material bruto) e pela pesquisa de 40 horas (material de arquivo). Destaque importante por ser este o último registro-entrevista da cineasta Susana Amaral (de “A Hora da Estrela”) E que agora integra a edição especial online, de um 2020 “cancelado”, da 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Os entrevistados: Ana Arruda, Andrade Jr, André Luiz Oliveira, Anna Muylaert, Antonio Pitanga, Berê Bahia, Beto Brant, Betse de Paula, Cacá Diegues, Catarina Accioly, Chico Sant’Anna, Cibele Amaral, Cláudio Assis, Dira Paes, Dirceu Lustosa, Domingos Oliveira, Evaldo Mocarzel, Fernando Adolfo, Geraldo Sobral, Helena Ignez, Iberê Carvalho, Maíra Carvalho, Ismail Xavier, Jean-Claude Bernardet, Jimi Figueiredo, Jorge Bodanzky, José Damata, José Eduardo Belmonte, José Joffily, Juliano Cazarré, Kakau Teixeira, Kiko Goifman, Lírio Ferreira, Lúcia Murat, Luiz Alberto Pereira, Luiz Carlos Barreto, Luiz Zanin, Maeve Jinkings, Maria do Rosário Caetano, Marisol Ribeiro, Mauro Giuntini, Milton Gonçalves, Murilo Grossi, Murilo Salles, Neville D’Almeida, Nilson Rodrigues, Orlando Brito, Othon Bastos, Paloma Rocha, Paulo Caldas, Paulo Miklos, Paulo Sacramento, Renato Barbieri, René Sampaio, Rodrigo Santoro, Rubens Ewald Filho, Ruy Guerra, Santiago Dellape, Sara Silveira, Sérgio Fidalgo, Sérgio Moriconi, Silvio Tendler, Suzana Amaral, Sylvio Back, Tata Amaral, Tizuka Yamasaki, Umberto Martins, Vladimir Carvalho, Walter Carvalho, Walter Lima Jr., Walter Mello.
“Contar a história deste Festival significa contar a história do próprio cinema brasileiro. Tudo que aconteceu a partir de 1965 passou em suas telas. Significa também falar da luta cultural contra a censura e a ditadura até a subsequente redemocratização, a extinção da EmbraFilme e Retomada. O destaque que ocorre hoje para o cinema Pernambucano, por exemplo, também começou lá, com filmes como ‘Baile Perfumado’, ‘Amarelo Manga’ e os curta-metragens de Kleber Mendonça Filho” explica Lino Meireles.