Direção: Marcus Baldini
Roteiro: Homero Olivetto, José de Carvalho, Antônia Pellegrino, baseados em livro de Raquel Pacheco
Elenco: Deborah Secco, Cássio Gabus Mendes, Drica Moraes, Fabíula Nascimento, Cristina Lago, Guta Ruiz
Fotografia: Marcelo Copanni
Música: Fino Coletivo
Direção de arte: Luiz Roque
Figurino: Leticia Barbieri
Edição: Manga Campion
Produção: Roberto Berliner, Rodrigo Letier, Marcus Baldini
Distribuidora: Imagem Filmes
Estúdio: TV Zero
Duração: 109 minutos
País: Brasil
Ano: 2010
COTAÇÃO: MUITO BOM
Em 2005, Raquel Pacheco decidiu contar a sua história no livro “O Doce Veneno do Escorpião”, uma garota de classe média alta que se transforma na prostituta mais famosa do Brasil, Bruna Surfistinha. A sua decisão foi por querer, deixando bem claro em seu relato. O livro (best-seller) vendeu 300 mil exemplares. O diretor Marcus Baldini (do documentário “Sonho Verde” – 2006 – sobre o garimpo de esmeraldas da Serra da Carnaíba) resolveu adapta-lo (livremente inspirado) ao mundo cinematográfico. “Fiquei muito tocado pela história que eu li, não só pelo lado curioso da vida de uma garota de programa, mas pela trajetória de uma menina desencaixada que tenta encontrar seu lugar no mundo de uma forma conturbada, pelo drama de uma menina que quer se sentir desejada a qualquer preço. É um olhar meu, artístico, sobre a história da Bruna. Nossa preocupação foi que o erotismo nunca viesse à frente da dramaturgia”, disse Baldini. Foram nove e meia semanas de filmagens, entre outubro e dezembro de 2009, em São Paulo e Paulínia, com orçamento de R$ 6 milhões. A trama tem Deborah Secco como protagonista. Ela teve seu crescimento profissional – e físico – por causa das novelas globais. Em “Bruna Surfistinha”, a atriz entregou-se ao papel, tendo como preparador de elenco Sergio Penna (de “Bicho de Sete Cabeças”, “Carandiru” e “Lula, O Filho do Brasil”). Ela transpassa a sutileza da transformação. A “nerd” da escola perde espaço à garota mais desejada pelos homens, sem apelar ao óbvio, clichê e afetação. Ela vivencia o realismo (“não realista” – palavras do próprio diretor) do universo dos “programas”. Bruna sabe exatamente o que quer, sem supostas crises existenciais. Passeia pela opção que escolheu sem o questionamento necessário aos seres “hipócritas” (um deles, maridos que traem as suas esposas na parte da tarde do dia) que pululam em nossa sociedade. Talvez por isso a crítica tenha adquirido o tom de polêmica, por apresentar um roteiro unilateral, ao mostrar o universo da prostituição sem o devido “corte” e sem o julgamento preconceituoso. Devem ter pensado: “Que ensinamento aos nossos filhos! Será que vendo uma história de “sucesso” dessa, uma garota não desejará seguir profissão homônima?”.
A psicanalise embasa o argumento (com o complemento da economia) de que “Se há demanda, há oferta”. A história de Raquel resume várias outras. Escolheu um caminho “fácil” vendendo o corpo a fim de ganhar dinheiro. Os clientes, por sua vez, buscam o prazer. Se o espectador observar atentamente a trama, perceberá elementos julgadores, que se apresenta pelas ideias de suas personagens. O roteiro não realiza o julgamento, fornecendo, assim, a liberdade para abusar do tema sem a responsabilidade de auto-proteção. O longa inicia com a personagem dançando meio “sexy”, meio “desengonçada” a frente de uma camera de computador, tendo como trilha sonora “Time of the Season”, do grupo Zombies, complementada pela narração explicativa de Deborah. As cenas buscam o detalhe intimista, com olhar perdido e utiliza o foco e o desfoque, mergulhando no que ela (ainda Raquel) sente e sofre. É o existencialismo de uma vida sem a competência da sobrevivência. A sua idade, 17 anos, é cruel, ininteligível e abstrata. Os outros não a entendem, utilizando como defesa passar a atenção ao outro, para que sofra o que eles, talvez, não suportem. É sempre o outro. Vive-se pelo outro. Então quando alguém burla o sistema e decide vivenciar a plena experiência da existência, o mundo abre possibilidades. Aos olhos de quem não consegue, o ilícito e vulgar adquirem aspecto perpetuo. A sua vida de começa em uma “entrevista de emprego” por uma agenciadora, que traça o grau de “gostosura” dela. Aprovada, o nome Bruna torna-se marca. As digressões passadas(família e escola) explicam as causas que a levaram a seguir por este caminho. Ela nunca foi popular. “Nerd do caralho” e “meio sujinha”. A narrativa comporta-se de forma direta, sem dramas e sentimentalismos, contemplada por uma camera atenta que direciona o ritmo sem se fazer perceber. Há humor perspicaz, sarcástico e debochado nos diálogos, equilibrando-se entre a violência vocabular e a resignação da raiva. “Sou uma garota de programa. Se estiver tudo certo com você, para mim tá tudo certo”, diz. Bruna diferencia-se das outras por oferecer atenção e realizar desejos sem limitações.
“Tem que saber se vender”, ensina-se. O filme não impõe suavizações. Insinua e mostra nudez e sexo anal sem ser explicito. “Ganho mais em uma semana do que a maioria com um diploma na parede”. O processo de uma mera ninfeta em uma mulher fatal foi gradual à percepção do espectador. “Queria fazer os mês pais sentirem alguma coisa. Nem que fosse vergonha”, diz aludindo mais uma vez ao outro. Jean-Paul Sartre, o filosofo francês, já dizia que “O inferno são os outros”. A intimidade com os clientes é o que a faz melhor. “Ser a melhor coisa do dia daqueles caras. Cada um era uma viagem, uma história”, diz entre discussões e brigas por roubo e por “projeto de pirigete”, “cinderela cocota” e “feto de puta”. A fotografia de Marcelo Corpanni acrescenta elegância estilizada. Há uma para o dia e outra para a noite. “Um desafio era fazer muitas cenas de sexo durante o dia, que é o horário de mais movimento nesses lugares, como a Bruna mesmo diz no filme. Não tem contraluz, esse tipo de recurso. Mas acho que mesmo assim conseguimos fazer um desenho de luz, não ficar chapada. Criamos um pouco de cor, um tom mais amarelo, umas nuances, porque visitamos esses privês e eram horríveis, com luz fluorescente. Ia parecer que eles estavam fazendo sexo numa farmácia!”, disse Marcelo. Bruna adiciona o termo surfistinha. Cria perfil na internet. Faz programas e dá cotação aos clientes. “Sou uma mulher perfeita: trepar, ouvir e não reclamar de nada”, diz. Ela acredita tanto nela que acha que pode tudo. Programa de televisão. Prêmio de revelação instantânea. Entram no jogo amizades interesseiras e o abuso de drogas sintéticas. Há o fundo do poço para que possa emergir. Reparem na cena em que a verdadeira Bruna Surfistinha aparece em uma ponta como a garçonete na cena em que Bruna e Hudson jantam fora. Os coadjuvantes estão antenados e sintonizados quando contracenam. Há no elenco nomes como Cassio Gabus Mendes, que interpreta Huldson, um cliente que se envolve com Bruna, e Drica Moraes, no papel da cafetina Larissa. Fabiula Nascimento (de Estômago) vive a prostituta Janine; Cris Lago (de Olhos Azuis) é Gabi, melhor amiga de Bruna; e Guta Ruiz (da série Alice) faz a garota de programa de luxo Carol. A música é assinada pelo coletivo Instituto, com criações dos produtores Rica e Gui Amabis e Tejo Damasceno e canções de bandas e artistas independentes – Cansei de Ser Sexy e Groove Armada. Radiohead em “Fake Plastic Trees” finaliza, despertando algumas gotas de excreção oftalmológica nos mais céticos. Concluindo, um filme que merece ser visto. Recomendo.
Formado pela ECA-USP em 1998, iniciou sua carreira no departamento de chamadas comerciais da MTV Brasil. Depois de algum tempo como montador, torna-se diretor, realizando videoclipes e centenas de comerciais. Recebe prêmios nos principais festivais de propaganda do mundo, como Londres, Nova York, FIAP e Brasil. Dirigiu o curta-metragem Sopa no Mel (1995), o documentário Sonho Verde (2006) sobre o garimpo de esmeraldas da Serra da Carnaíba, e co-dirigiu a série Natalia (2010) para a TV Brasil. O filme Bruna Surfistinha marca a estreia da Damasco Filmes, co-produtora do longa e produtora de Sonho Verde – o Filme, seu próximo projeto.