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Bobby Fischer Contra o Mundo

Não acredito em psicologia, acredito em boas jogadas

Por João Lanari Bo

Festival de Sundance 2011

Bobby Fischer Contra o Mundo

Bobby Fischer Contra o Mundo”, documentário de 2011 dirigido por Liz Garbus – de “O que aconteceu, Miss Simone” e “Lost Girls – Os Crimes de Long Island”, entre muitos outros – ganhou uma (inesperada?) atualidade com os acontecimentos recentes em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia. Em especial, o encontro de Trump e Putin, uma espécie de circo coreografado que pretende esconder uma real tensão entre duas potências nucleares – exatamente o que o mundo testemunhava atônito durante a Guerra Fria, quando a humanidade esteve a um passo do aniquilamento.

E qual a razão da atualidade? Bobby Fischer, o herói/anti-herói norte-americano desse esporte cerebral que os russos dominam, é produto direto da circunstância que assolava o mundo nas décadas que se seguiram à 2ª Guerra Mundial. Circunstância movida, naturalmente, pela expansão voraz da mass media à época, que elevou o recluso Fischer a um status de pop star global. Por diversas vezes, o doc mostra âncoras de noticiários iniciando o resumo do dia com guerras, turbulência econômica, o crescente escândalo de Watergate, mas, com a ressalva – primeiro, vamos falar de Bobby Fischer.

As partidas contra Boris Spassky na Islândia em 1972, quando estava em jogo o título mundial de xadrez, foram um evento de repercussão global – algo comparável à “Luta do Século” entre Muhammad Ali e Joe Frazier, em 1971. De um lado, um judeu individualista e solitário do Brooklyn, campeão absoluto de xadrez em seu país, que calibrava suas declarações à imprensa e, pouco a pouco, iria descambar para um comportamento errático, à medida que a esfera pública invadia sua vida privada. Do outro, um produto da grande máquina de xadrez totalitária soviética, Boris Spassky, fruto da longa tradição russa nesse exercício mental extremo, campeão do mundo desde 1969. Vencê-lo seria também confirmar a dianteira dos EUA na corrida espacial, após a chegada à Lua, também em 1969.

O ponto alto de “Bobby Fischer Contra o Mundo” é, sem dúvida, o registro audiovisual das 24 partidas em Reykjavík (em islandês ”baía fumegante”), habilmente editado como se fora um show à parte. Fischer, a essa altura uma persona mitificada pela mídia, relutou em comparecer até o último minuto. O empurrão final veio do poderoso Henry Kissinger, Secretário de Estado, que telefonou e disse: . Pesou também a doação de 125 mil dólares prometida pelo controverso empresário britânico Jim Slater: o sentimento do confronto entre capitalismo e comunismo era patente. Em um clipe de entrevista na rua, um aficionado não hesita em proclamar a vitória de Fischer: “Se Spassky vencer, a maior parte do dinheiro irá para o governo russo.”

O duelo com Spassky marca também uma inflexão em “Bobby Fischer Contra o Mundo”. Na primeira parte, vemos imagens de Bobby exercitando-se, esbanjando um preparo físico irretocável. O fotógrafo da revista Life, Harry Benson, responsável por fotos de Bobby na academia, correndo, e até nu no chuveiro, ficou próximo de Fischer (algo difícil) e narra histórias interessantes do convívio. Mens sana in corpore sano, frase em latim que significa “mente sã em corpo são”, era o mote do enxadrista. No cenário da partida, entretanto, emergiu um jogador hipersensível aos menores ruídos, inclusive das câmeras que registravam o acontecimento, acompanhado ansiosamente em todo o mundo. Depois de uma série de jogadas que entraram para os anais do xadrez, objeto de culto por milhões de jogadores, Fischer venceu.

O script hollywoodiano que se esperava, entretanto, não se confirmou – e, pior, detonou em Bobby Fischer uma paranoia que se aguçou ao longo da sua atormentada existência. Ele era, em certo sentido, tão sombrio, difícil e exótico quanto os russos, e não conseguiu defender seu título três anos depois. Tornou-se um eremita nômade: começou reforçando seu vínculo ao grupo religioso Igreja Mundial de Deus, cujo Pastor, Herbert Armstrong, proclamava o próximo “fim dos tempos” e o advento do Reino de Deus. Armstrong tinha tendências fascistas, achava os EUA e a Grã-Bretanha “moralmente falidos”. O anunciado fim não veio, Bobby decepcionou-se, na sequência tornou-se um obstinado antissemita e eclipsou-se.

Bobby Fischer, uma das estrelas indiscutíveis do firmamento do xadrez até hoje, acabou refém de um cabedal de teorias conspiratórias – o que o faz um prenúncio dos tempos que vivemos, pós-internet. No final da vida, retornou à Islândia, que lhe concedeu a cidadania, e faleceu em 2008.

3 Nota do Crítico 5 1

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