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Blokada

Fantasmas do real

Por João Lanari Bo

Mubi

Blokada

Talvez um dos episódios mais patéticos da Segunda Grande Guerra seja o bloqueio à cidade de Leningrado (atual São Petersburgo). De outubro de 1941 a janeiro de 1944, foram cerca 870 dias de cerco quase integral, que levou à morte mais de um milhão de pessoas, um terço da população. A maioria morreu de frio, fome e doenças, como tifo, escarlatina e icterícia; muitos pereceram nos bombardeios. A expectativa de Adolf Hitler era asfixiar e liquidar a cidade com um mínimo de perdas para as forças alemãs. O rigoroso racionamento de alimentos, sobretudo no primeiro inverno do cerco, impactou de tal forma que o recurso ao canibalismo se tornou uma opção, mesmo entre entes queridos da mesma família. “Blokada” (2006), de Sergei Loznitsa, é um exercício de 52 minutos sobre o bloqueio de Leningrado, feito exclusivamente com material de arquivo, quase todo de newsreel, sem narração e/ou entrevistas, com pista de ruídos naturais construída de modo inteiramente artificial, em estúdio. No dia 27 de janeiro de 2014, em Berlim, o jornalista e escritor russo Daniil Granin discursou perante o Parlamento alemão sobre o cerco a Leningrado. Estavam presentes a Chanceler Angela Merkel e as principais lideranças daquela Casa Legislativa. Granin, com 95 anos, soldado à época estacionado na cidade, não tergiversou:

O bloqueio foi repentino e inesperado, assim como a Guerra foi inesperada para o país. Não haviam reservas de combustível, de alimentos…uma após a outra começaram a acontecer as tragédias, luz e energia acabaram, não havia água, sistema de esgotos, aquecimento central… Os bondes pararam de circular, adicionando, em pleno inverno, três ou quatro horas de caminhada à pesada rotina de trabalho. O fardo adicional da caminhada fragilizou ainda mais o sistema muscular, incluindo enfraquecimento do miocárdio…o número de mortes repentinas nas ruas estava subindo rapidamente. Entre 6 e 13 de dezembro de 1941, 841 corpos foram levados das ruas para as câmeras mortuárias. Na metade do mês, pelo menos 160 pessoas por dia estavam colapsando nas ruas”.

Blokada”, o filme de Sergei Loznitsa, está imerso nesse fluxo quase onírico de memórias e latências, voluntárias e involuntárias. Sua fonte primária – material de cinejornal – reproduz imagens utilizadas à exaustão em outras produções, algumas delas como vinhetas das grades televisivas, signos recorrentes da memória. Cada plano de “Blokada” contém um valor expressivo em si mesmo. Ordenados para transmitir um registro da rotina de resistência da população, adquirem uma qualidade significativa, que chega ao limiar de uma visão poética sobre Leningrado sitiada. Os blocos temáticos – separados por interpolações de tela negra, alusão aos black-outs, como sugere Denise Youngblood – mostram a recuperação de livros de uma biblioteca semidestruída, ônibus e caminhões largados nas avenidas soterradas de neve ou o desespero das pessoas extraindo água do gelo das ruas. Com a ausência da narração, a minuciosa trilha de ruídos termina por desencadear um estranhamento na recepção do filme, um efeito de proximidade que chega a intimidar pela aderência às cenas mostradas. Sons triviais – porta rangendo, choro de criança, carro passando – acrescentam uma aura de (estranha) familiaridade à película, suavizando a adesão do espectador. O bloco de imagens de maior impacto mostra corpos abandonados, ou enrolados em panos, crianças inclusive, montado e sonorizado no mesmo diapasão. O resultado, em outras palavras, é uma sequência inaudita de imagens-sonoras, imagens expandidas pelo uso do som. Fantasmas do real.

Tudo funciona, no esquema de Loznitsa, como se a interação do espectador com a diegese cinematográfica fosse, em si mesma, a operação de reconstruir o passado através dos microelementos visuais e sonoros. Sua estratégia, entretanto, sabota o perfil habitual dos filmes construídos fundamentalmente a partir de imagens de arquivo.  Com o esquema sensório-motor do espectador estimulado, a articulação entre som e imagem instaura o efeito perturbador que caracteriza “Blokada”. A visão humana, lembra Michel Chion, é parcial e direcional: a audição é onidirecional. As imagens de “Blokada”, filmadas com o vocabulário do cinejornal, possuem um sistema estruturado de orientação que reassegura ao espectador os limites físicos em que se desenrola a ação. Em contraponto, a trilha sonora, os ruídos, vêm de todos os lados e origens, dentro e fora do campo visual. Para arrematar, a ausência de narração – e igualmente de qualquer diálogo inteligível – deliberadamente esvazia eventuais potências sonoras que poderiam vir a dominar a imagem. A pista de som desorienta o espectador, colocando em xeque a habitual interdependência entre real e virtual que se faz para construir o que chamamos de “realidade”.

Tal ambiguidade alcança o ápice na sequência final, que passa do êxtase da população liberada, pontuado pelos fogos de artificio, à implacável vingança da execução em massa dos alemães, ocorrida em 5 de janeiro de 1946. Estas últimas imagens, as únicas que não estavam no conjunto de quatro horas do material de cinejornal, foram extraídas do documentário “A People’s Verdict”. A palavra documentário, dizia Alberto Cavalcanti, guarda, sem dúvida, “um sabor de poeira e de tédio”. A citação, sobejamente conhecida, vale ainda mais para o filme de arquivo, em particular do cinejornal. A ideia de latas adormecendo em algum depósito esquecido vem à mente quando se fala em documentários feitos a partir do “cinema de atualidades”. Consumidas praticamente no momento da produção, as imagens dos cinejornais possuem uma capacidade única, não obstante, de recuperar gestos dramáticos carregados de historicidade. O mérito de Loznitsa foi atualizar essa potência em “Blokada”.

5 Nota do Crítico 5 1

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