Betânia
O Maranhão para o mundo
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cinema de Berlim 2024
É sempre obrigatório comemorar quando um filme brasileiro quebra os muros e ganha o “mundão de meu deus”. Integrante da mostra Panorama do Festival de Berlim 2024, “Betânia”, do realizador estreante Marcelo Botta, vai além e traz a terras alemãs a metáfora de uma reconstrução pessoal pela mudança da geografia. Este é um filme de situações, de retratar as coisas simples da vida e de resgatar a memória das tradições locais, ainda que no meio das adversidades de lugares “esquecidos” do progresso e de seres habitantes “encafifados”. Marcelo, que também roteirizou o longa-metragem, quer apresentar a trama pelo universo folclórico e pelos costumes particulares desse vilarejo localizado nos Lençóis Maranhenses. E inicia o filme em um ritual de morte e todas as formalidades da crença espiritual do Bumba Meu Boi e do “mestre, rei dos mestres”. Assim como em Nova Orleans, que os próximos cantam e desfilam seus mortos, aqui há um cortejo de dança e fogo por dentro das dunas, e com o extra de exaltação desesperada ao Brasil e ao “sal”.
Podemos perceber que há uma maior liberdade cênica em “Betânia” num limite tênue, extremamente sutil, entre a estética (poética-visual dos cenários apresentados) e o improviso coloquial do comportamento mais popular de suas personagens. Talvez para assim criar uma maior intimidade imersiva do visitante-público, nós, estrangeiros no olhar, ora no modo exótico, ora no modo mais eloquente e orgânico. “Betânia” é um épico de uma imigração. De ter que sair de sua origem, espaço de refúgio e conforto contra a toxicidade do novo. Essa distância (e o medo, por que não) está explícita nas expressões e no tempo dos olhos de uma personagem, que reverbera sofreguidão, mas também resignação (um aceite da condição e do lugar que está). Aqui, a narrativa é de “abraço”. Busca-se abarcar toda e qualquer manifestação-problematização social. A aula didática na escola; o lixo na rede dos pescadores; a DJ Drag o turismo desenfreado após a energia (este ponta que pode ser aprofundado com “Samuel e a Luz”, de …). Essa condução não dá descanso. Não quer a contemplação da paisagem, tampouco a atmosfera sensorial, e sim a pressa para chegar ao fim. Não é um filme de meios. O foco está na sua realização.
“Betânia”, como foi dito, é um filme de instantes, que em certos momentos evoca a metafísica pelos flashbacks atravessados (à moda de “Árvore da Vida”, de Terrence Malick – de um tempo em que se tinha tempo – que precisa atravessar as dunas de bugre para fazer partos em casa e que conversavam à luz da lamparina). De fragmentos de uma vida em transformação do interior à cidade. De seguir o “show da juventude” pela vida imediata, mais líquida, mais casual e contra os valores estereotipados que a mãe mais antiga traz sobre o “Deus dela”. “A minha internet é minha cabeça; eu não tenho resposta para tudo”, ela diz, orgulhosa com os limites do existir. Nós percebemos que cada vez a narrativa insere mais a brasilidade. As músicas, por exemplo, são versões populares, mais ao estilo brega e do reggae, de sucessos internacionais, como os temas de “Flashdance” e “Nasce uma Estrela”, este com Lady Gaga. E tem até mesmo Lana del Rey em reggae. Isso tudo objetiva criar um contraste. Um conflito cultural. Nossa personagem principal é obrigada a “descobrir” a civilização e o progresso, mas só ouve na televisão notícias sobre tiroteiro e o quão perigoso está os centros urbanos. Ela também não sente solidão. Está integrada a seu meio familiar, que conserva a retórica deles de falar sem pensar e de serem naturalmente engraçados, com suas expressões idiomáticas. As conversas (a maioria “fofocas” sobre outros próximos) ajudam a se sentir pertencente a esse lugar que chama de nova casa. “Betânia” nos questiona sobre o porquê de tanto endeusamento da vida na cidade grande. O que realmente as pessoas buscam? Por que não podem ter isso em áreas mais afastadas?
“Betânia” é um retrato de um povo que nos ensina que é possível viver incondicionalmente a felicidade em qualquer lugar. Todos eles riem de tudo. Aceitaram a condição de “pobres tolos” com o tópico, descolado e articulado jeitinho brasileiro. É só ter nossos familiares ao lado. Que dão seu “corre” e sobrevivem como podem, falando “nem francês, nem inglês, mas maranhês”. E assumem inclusive que estão perdidos a turistas franceses, “típico francês que nunca está feliz”, que compara as dunas do Maranhão com Dubai e o Deserto do Saara. Que já se adaptaram ao novo mundo com os celulares na mão na mesa de jantar. “Betânia” é isso: um resgate de uma cultura. E ainda que o filme seja ansioso para mostrar tudo o que foi pensado, às vezes afobado e com informações (e lutas sociais) demais dentro de suas duas horas de duração, é um importante documento de arquivo para informar a esta geração e às novas futuras.