Bem-Vinda, Violeta!
Pensar ou não pensar, eis a cordilheira das ideias!
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2022
Não é fácil transpor a literatura cerebral do escritor Daniel Galera às telas do cinema. Podemos dizer quase impossível, porque há uma sutileza de camadas em subtextos, que juntas conseguem personificar a metafísica de nossas existências humanas enquanto frutos de uma massa social. Galera aprofunda o desejo mais inconsciente do ser individual, aquele que capta a precisão do próprio viver. Sua literatura é uma terapêutica tempestade de ideias e emoções em processo de aceitação e/ou de transformação, mas não pelo clichê do insight da mudança e sim pelos efeitos que tudo isso causa, acordando “demônios” internos e pendências, estas, que por conforto, jogamos “embaixo do tapete”. Mesmo assim, muitos diretores aceitam esse desafio e embarcam na aventura. Alguns esquecem do quão complexo é atravessar suas entrelinhas, como é o caso de “Prova de Coragem“, de Roberto Gervitz. Outros sabem. A “vítima” da vez é o filme “Bem-vinda, Violeta!”, de Fernando Fraiha, exibido na mostra competitiva do Festival de Rio 2022, que se inspira no romance “Cordilheira” do escritor nascido de São Paulo, mas que vive no Rio Grande do Sul.
“Bem-vinda, Violeta!” pode ser definido como uma experiência psicológica, de imersão entre a busca da lucidez, da permissão da catarse e do controle mental em acessar sentimentos profundos (e dores) como se fosse uma pragmática porta que se abre e se fecha sem tantas consequências devastadores. O longa-metragem desenvolve-se por um treinamento de um grupo de escritores, que adentra a radicalidade de uma terapia de choque sem volta como parte do processo. Cada etapa sinaliza uma escada. Um bônus de pontuação até receber o prêmio final: o emprego. Muitos filmes já abordaram essa tática de se ir até o limite para conseguir a perfeição: “Whiplash – Em Busca da Perfeição”, “Cisne Negro”, “Slalom – Até o Limite“, por exemplo. E muitos preparadores de elenco também, como o famoso e polêmico processo de Fátima Toledo nos filmes, como “Tropa de Elite”. Sim, a própria neurociência estimula a repetição para assim libertar as amarras da autoproteção, que por sua vez gera o medo paralisante e o retorno à condição anterior. Para quebrar isso é preciso transpor essas limitações cognitivas, trangressões, moralidades e prévios condicionamentos padrões.
Aqui, o referido e reconhecido laboratório a esses escritores, mencionado acima, está geograficamente localizado na Cordilheira dos Andes (“o fim do mundo” e palco do famoso acontecimento de canibalismo-sobrevivência – outra sacada à antropofagia da obra?), lugar extremamente metafórico, porque seu relevo abrange geleiras, vulcões, pradarias, desertos, lagos e florestas, simbolismos variados dos estágios das subjetivas condições e personalidades de cada um de nós. A atmosfera pode causar o calor ou o frio, dependendo do nível do controle de suas emoções. A narrativa de “Bem-vinda, Violeta!” quer também a personificação. Transformar a invisibilidade sentimental em imagem. Sua fotografia, estética, ora “suja” pelas gravações de uma câmera de vídeo, almeja a praticidade do olhar, fazendo com que o espectador não desvie o foco do material bruto da trama em lapidação literária, cuja história se conta em capítulos para soar a ficção manipulada de vidas reais. E para interpretar a personagem principal, a escritora Ana, a atriz Débora Falabella foi convidada e ao aceitar, coitada, não sabia mesmo onde estava se metendo, muito porque contracenava com o cruel “método”, o ator Darío Grandinetti, conhecido por sua colaboração ao diretor Pedro Almodóva no filme “Fale com Ela”.
Em “Bem-vinda, Violeta!”, nós embarcamos em uma viagem. De estrada. De se entrosar novamente com os “fantasmas” e com aquelas poeiras embaixo do tapete. “O que vocês escrevendo?”, pergunta que inicia o ciclo da “implosão destrutiva”. É, a psicanálise pode nos dar um caminho, nos mostrando que só chegaremos a nosso “destino” se “recalcularmos a rota”. É o momento de desconstrução. De coma. De zerar achismos e defesas. Sem orgulhos, arrogâncias e preguiças. Sem preocupações “herméticas”. Revisar se tudo é 99% sofrimento e/ou o 1% de sentar e escrever. A técnica transcende a humilhação à dor física:“não parar de escrever até não pensar em escrever” para “libertar a mente”. “O que você pensa quando está pensando?”, continua-se. Sim, mas já foi dito aqui, logo na primeira linha deste texto, que não é fácil transpor Daniel Galera, pois a tendência em cair no óbvio e na facilitação do roteiro é bem grande e comum de acontecer. “Bem-vinda, Violeta!” tentou muito, mas não conseguiu impedir certos gatilhos comuns, como a estrutura de novela, seus núcleos, flashbacks, didatismo em explicar metáforas. Essa obviedade reverberada incomoda a percepção do contexto. É como se todo trabalho cerebral, toda sutileza psicológica, todo simbolismo filosófico de nosso coloquialismo existencial pudesse explodir. Um vulcão, por exemplo, que acorda para queimar o tudo e deixar o nada. Incomoda, mas a mensagem e a atmosfera objetivada estão presentes no filme. “Bem-vinda, Violeta!” não é ruim, pelo contrário, mas cai na própria armadilha criada ao “pensar demais o que está pensando”.