Babi Yar. Context.
A ravina
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2021
Nenhum monumento fica em Babi Yar.
Uma gota pura como uma lápide bruta.
Estou com medo.
Hoje, sou tão velho
Como o povo judeu.
Agora eu pareço ser
um judeu.
Aqui eu me arrasto pelo antigo Egito.
Aqui pereço crucificado na cruz,
e até hoje carrego as cicatrizes dos pregos.
“Babi Yar. Context”: é o filme que Sergei Loznitsa realizou em 2021, cobrindo, em ordem cronológica, os eventos antes e depois do massacre ocorrido na ravina Babi Yar, nas cercanias de Kiev, Ucrânia – no local, em 29 e 30 de setembro de 1941, os nazistas assassinaram 33.771 mil judeus. Ravina: barranco formado por enxurrada de água pelas encostas. Provenientes de material de arquivo, cinejornal sobretudo, as imagens flutuam entre as cidades de Lviv e Kiev para dar conta da mudança da paisagem do país, literal e espiritualmente, causada pela guerra e a violência. Lviv e Kiev são duas cidades ultimamente no foco dos noticiários, à luz da patética guerra que se desenrola em solo ucraniano. Utilizando a técnica que se tornou sua marca registrada – sons ambientes, ruídos, falas, como fez em “Blokada” e “O Processo”, aderindo às imagens – Loznitsa constrói uma narrativa convincente em torno da tragédia, concentrando-se na invasão da Ucrânia pelos nazistas, a retomada posterior do país pelos soviéticos e os julgamentos dos SS alemães. Desta feita, entretanto, faltam cenas explícitas das execuções, as quais, obviamente, não sobreviveram – se os nazistas as documentaram, destruíram quando bateram em retirada. A palavra “contexto” delimita o alcance do filme: o que restou do massacre propriamente dito foram poucas fotos e depoimentos de testemunhas.
Nenhum monumento fica em Babi Yar. Com esse verso, o poeta Yevgeny Yevtushenko abriu o poema que escreveu em 1961, para protestar contra a recusa da União Soviética em identificar Babi Yar como local de assassinato em massa de judeus. A desculpa dada pelo Kremlin, sofismática e insuficiente, foi que os alemães mataram outras pessoas, não apenas judeus – milhares de execuções ocorreram durante os dois anos de ocupação nazista. O número de mortos na ravina é estimado em cerca de 100 mil, obtido pelo cálculo de moradores obrigados a enterrar os corpos. Mas é evidente, desnecessário ressaltar, que a carnificina com o grupo judaico foi premeditada e, absurdamente, direcionada. No local funcionou a seguir o campo de concentração de Syrets, onde foram internados prisioneiros de guerra russos, civis comunistas e combatentes da resistência: muitos também foram executados. Quando os nazistas se retiraram de Kiev, entre agosto e setembro de 1943, o campo foi parcialmente demolido e diversos corpos exumados e queimados, com as cinzas espalhadas pelas áreas vizinhas.
Depois da “libertação” de Kiev e a ocupação soviética, Babi Yar tornou-se durante anos um depósito de lixo industrial: em 1961, um deslizamento de terra desencadeou despejos de lama, água e restos humanos nas ruas da capital ucraniana, conhecido como o “incidente de Kurenivka”. As autoridades em Moscou censuraram informações detalhadas sobre o desastre, alegando que 145 pessoas foram mortas: estimativa posterior, feita em 2012, indicou que o número de vítimas seria algo em torno de 1.500. Mais tarde, parte do local se transformou em parque e complexo de apartamentos. Somente em 2021 foi inaugurado o Centro Memorial do Holocausto Babi Yar, que prevê a construção de museu, memorial com nomes das vítimas, espaço religioso (incluindo sinagoga, igreja e mesquita), centro de pesquisa educacional e científica, biblioteca e plataforma multimídia. “Babi Yar. Context”, o filme, foi coproduzido com o Centro.
Loznitsa optou, como tratamento estético, pela recontextualização das imagens de arquivo, sem textos, ou narração explicativa. Em entrevistas anteriores, o diretor sublinhou a recusa de qualquer tentativa de influência verbal: se ponho a voice-over, ofereço minha visão do assunto…ele (o espectador) tem de concordar comigo ou não. As imagens provocam inicialmente uma impressão de “autenticidade”, derivada do caráter “instantâneo” das tomadas: mas sem a perspectiva abstrata gerada pelo cinejornal, calçado em tomadas triviais e continuidade espaço-temporal convencional e previsível. A exemplo sobretudo de “Blokada”, a minuciosa trilha sonora – elaborada sob a supervisão do habitual colaborador do cineasta, Vladimir Golovnitskiy – é o dispositivo responsável por provocar no espectador um estranhamento familiar, que desconstrói a superficialidade do registro. Tudo funciona, no esquema de Loznitsa, como se a interação do espectador com a diegese cinematográfica fosse, em si mesma, a operação de reconstruir o passado através de microelementos visuais e sonoros. “Babi Yar. Context” atualiza esse passado – que insiste em retornar para um presente, mais uma vez, tragicamente conturbado.