As Bestas
A hostilidade mora ao lado
Por Pedro Sales
Festival de Cannes 2022
“As Bestas” é um filme calcado no desconforto e na tensão crescente. Vencedora do prêmio Goya de melhor filme, o equivalente ao “Oscar espanhol”, e do prêmio César de melhor filme estrangeiro, o “Oscar francês”, a produção franco-espanhola dirigida por Rodrigo Sorogoyen (“O Candidato”) examina a relação de hostilidade e discórdia travada entre vizinhos, explorando a xenofobia e as visões de mundo como motivações para os embates. Por meio dessa trama, o cineasta escalona os conflitos e provoca no espectador uma imprevisibilidade no que tange ao desenvolvimento narrativo. O controle do suspense, a direção e construção de episódios de desgaste mútuo, portanto, são os principais destaques da obra, em detrimento das incursões dramáticas posteriores. O filme se parte como um díptico, ou seja, em duas partes, porém é evidente que uma delas parece mais desgastada, como se perdesse o fôlego e não estivesse à altura da outra.
Antoine (Denis Menóchet) e sua esposa Olga (Marina Foïs) são franceses vivendo em uma vila na Galícia, região da Espanha. O idílio bucólico de deixar a cidade grande para recomeçar no campo vivendo da agricultura e reconstruindo velhas casas para incentivar novas pessoas a morarem lá lida com vários problemas, o pior deles, os vizinhos. O casal possui uma visão ecológica do mundo, que o leva a recusar a proposta da construção de geradores de energia eólica no vilarejo, afinal todos os moradores devem aceitá-la conjuntamente. Por outro lado, os irmãos Xan (Luis Zahera) e Lorenzo (Diego Anido), os vizinhos, dependem e sonham com tal dinheiro, principalmente para abandonar o lugar onde foram nascidos e criados. Esse se torna, então, o ponto de partida das rixas, mas não o único.
Desentendimentos entre vizinhos são comuns e em certa medida corriqueiros, seja por invasão de espaço, barulho ou modos terríveis. Contudo, em “As Bestas“, Sorogoyen explora o embate sob a justificativa de que cada lado da briga representa um mundo diferente. Em primeiro lugar, a nacionalidade. O casal francês vai à Galícia para viver uma vida simples, enquanto os irmãos só conhecem aquela dura realidade, o bucolismo para eles sequer é um refúgio como para os outros. Outro ponto de divergência é o grau de instrução, Antoine é um professor, ao passo que os outros dois, “meros camponeses”. Apesar da dicotomia entre as duas realidades, a narrativa é totalmente centrada em Antoine.
O espectador acompanha sob a ótica do francês a constante xenofobia e a gradação das ameaças, tanto físicas quanto verbais. A hostilidade, portanto, é fundamentada sobretudo na decisão que poderia mudar a vida dos moradores. É interessante que Sorogoyen para trazer maior complexidade ao embate dedica uma longa cena, filmada em um só plano, para Xan justificar o seu ódio pelo francês. É, então, nessa guerra que o filme encontra sua maior força, escalonando a tensão e preparando o público para a irreversibilidade dos atos. O cineasta também é muito feliz em não estilizar tanto os planos. A fotografia adota uma câmera de discreta movimentação que mais parece testemunha dos atos, até mesmo na cena mais importante do longa, em que o zoom amplifica a dramaticidade. Inclusive esse caráter da câmera como testemunha encontra um comentário metanarrativo sobre o registro e a certeza provocada pela imagem a partir do momento que Antoine passa a filmar as ameaças sofridas.
No entanto, após uma virada temporal e, por que não de condução narrativa, “As Bestas” perde o caráter essencial da tensão e do suspense metodicamente controlado pela alternância do silêncio e da trilha sonora impactante e pelo uso da câmera por vezes estática, que reforça impotência diante do que pode acontecer. A sensação de que as situações podem fugir do controle desaparecem, mesmo quando o cineasta tenta provocá-las, mas sem a efetividade da primeira metade do longa. O que surge, então, é uma busca sorumbática e silenciosa por respostas e aparar pontas soltas em determinado episódio. É neste momento também que Olga cresce e assume o destaque. A atuação de Marina Fois torna-se mais impactante com bases no drama acentuado, com diálogos fortes, sobretudo com a filha, e mais exigência física da personagem. Mesmo com isso, a segunda parte, por assim dizer, nunca parece estar à altura da atmosfera estabelecida na primeira, que é de fato, o grande destaque do filme.