Artigo 370 – Caxemira em Ebulição
O conflito desdenhado
Por João Lanari Bo
Meron Benveniste foi um cientista político israelense, crítico das políticas de seu país em relação aos palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, defensor da solução de dois Estados, Israel e Palestina – não é pouca coisa, dada a tragédia que ocorre nos dias de hoje naquelas paragens. Mergulhado nas pesquisas e ativismo em torno dessa questão interminável, ele eventualmente tirava folga através de um recurso inesperado – punha-se a estudar outra região conflituada, no caso a Irlanda do Norte, às voltas com divisões internas profundas.
Um ponto de partida análogo pode ser útil para encarar a produção indiana de 2024, “Artigo 370 – Caxemira em Ebulição”, dirigida por Aditya Suhas Jambhale, disponível na Netflix. Diariamente, a mídia bombardeia nossos sentidos com a violência espetacularizada de duas guerras, Gaza e Ucrânia, acrescida – como se fosse um making of macabro – das negociações e tratativas em torno de uma improvável cessação das hostilidades, onde pontificam os notórios Trump, Putin e Netanyahu. Pois a fita indiana trata de outro conflito aparentemente insolúvel, enraizado em disputas por domínio territorial envolvendo três países gigantescos – Índia, China e Paquistão – e aquecida por antagonismos religiosos milenares, islamismo versus hinduísmo. E também fora do foco imediato da imprensa ocidental.
“Artigo 370 – Caxemira em Ebulição” é um filme de ação com pano de fundo político, como é frequente em Bollywood – desta feita, ao menos, não consta o cancioneiro típico das produções com o conhecido rótulo. A trilha musical é incidental e contribui apenas para a aceleração da narrativa. A história – baseada em fatos reais e mesclada com elementos ficcionais – começa em 2016, quando a habitual atmosfera de tensão em Caxemira evoluiu para uma escalada de distúrbios, detonada pela morte de Burhan Wani, contumaz ativista (sobretudo na internet) contra a presença indiana na Caxemira, de apenas 22 anos. Decisiva nessa ação foi a agente da inteligência indiana, Zooni Haskar (Yami Gautam Dhar, estrela no firmamento bollywoodiano), que se torna na sequência líder de um grupo especial para coibir anseios independentistas motivados pelo assassinato de Burhan. Simultâneo a essa pancadaria, ilustrada em várias cenas, estava o objetivo secreto do governo em Nova Delhi – revogar o Artigo 370 da Constituição indiana.
O título mesmo do filme – “Artigo 370 – Caxemira em Ebulição” – sugere uma intenção pedagógica, exibida por meio de ação, tiros, mortes, explosões, mas também de intrincadas negociações políticas e suspense no Parlamento nacional, quando a revogação foi proposta, e aprovada, em 2019. Quando foi lançada em 2024, a fita de Jambhale foi saudada por parte da crítica como “esclarecedora e educativa”, em função do apelo popular enquanto thriller político. Algumas vozes contrárias, entretanto, viram a obra com um artefato de propaganda do Primeiro-Ministro Narendra Modi e seu partido nacionalista hindu Bharatiya Janata, o BJP. Coincidência ou não, “Artigo 370 – Caxemira em Ebulição” foi lançado, juntamente com um pacote de dez filmes a favor das políticas de Modi, um pouco antes das eleições gerais de 2024 – quando 642 milhões de eleitores votaram, com o BJP obtendo maioria dos votos, garantindo ao Primeiro-Ministro um terceiro termo.
Caxemira é uma área montanhosa no norte do subcontinente indiano, partilhada por Índia, Paquistão e China, palco de uma longa disputa territorial entre os dois primeiros (a China disputa com a Índia uma região praticamente desabitada). Com a independência indiana em 1947, a Caxemira, depois uma (quase) guerra entre os dois vizinhos, ficou dividida em 2/3 para a Índia, com população majoritária muçulmana, e 1/3 para o Paquistão. O artigo 370 havia dado à Caxemira um status especial dentro da nação hindu, com alguma autonomia: sua revogação, ratificada pela Suprema Corte indiana em 2023, validou o controle direto pelo governo central do país.
“Artigo 370 – Caxemira em Ebulição” conta, em suma, essa conturbada história, mas de um modo seletivo. Os personagens indianos – incluindo o PM Modi – são apresentados como bem intencionados, combatendo o terrorismo e promovendo a estabilidade. A maioria dos “caxemires”, por outro lado, aparece como políticos corruptos, líderes separatistas e radicais, além de atiradores de pedras. Tratar-se-ia, segundo os oponentes do BJP, de uma estratégia de construir uma narrativa nacionalista hindu – presente, além do cinema, em outras manifestações da cultura pop, como música, poesia e livros.
Mas a Índia, afinal, é uma democracia, a maior do mundo, com toda a complexidade que isso implica em um país com 1,4 bilhão de habitantes. Dias antes da estreia do filme, o PM Modi manifestou-se nas redes sociais:
Não sei sobre o que é o filme, mas ontem ouvi na TV que está sendo lançado um filme sobre o Artigo 370. Ótimo, será útil para as pessoas obterem as informações corretas.