Argentina, 1985
Nunca Más!
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2022; Durante o Festival do Rio 2022
Argentina: esse nosso vizinho a um só tempo vibrante e tumultuado, palco de uma vida política que alternou, no século 20, ciclos de autoritarismo e democracia, assassinatos políticos e brilho literário. Parece haver uma densidade especial embutida no próprio significante “Argentina”, a ponto de servir como alavanca para o título de um filme – “Argentina, 1985”. O longa de Santiago Mitre, que galvaniza as audiências e caminha para consagrações maiores, incorpora toda essa massa de historicidade e restaura um dos momentos mais contundentes da razão jurídica: pela primeira vez na história mundial, um grupo de ditadores teve que comparecer perante os tribunais de seu próprio povo, que os julgou por seus crimes. A citação é da infalível Wikipedia: Ao contrário dos Julgamentos de Nuremberg, que foram realizados pelos vencedores, ou os da ex-Iugoslávia, onde também foram julgados por tribunais internacionais, ou o Tribunal do Camboja, que tem um status especial completamente independente do sistema judicial do país, este julgamento foi realizado no mesmo país dos réus, com as leis do próprio país e com promotores, advogados e juízes compatriotas. Nem é preciso salientar a diferença com o que ocorreu nos países igualmente egressos de períodos ditatoriais, como Uruguai, Chile, Brasil, Espanha, Portugal e África do Sul, onde ocorreu algo como transições negociadas, para usar um eufemismo clichê.
O Juicio a las Juntas, como é conhecido o julgamento, tinha no banco dos réus nove militares das três armas que compunham as Juntas que conduziram o país desde o golpe militar de 24 de março de 1976 até a Guerra das Malvinas em 1982, entre eles os sinistros Jorge Rafael Videla, Emilio Eduardo Massera e Roberto Eduardo Viola. A época foi nomeada oficialmente pela Junta como Proceso de Reorganización Nacional – mais um eufemismo, desta vez trágico. Reorganización é quase uma ironia para descrever o que se passou na Argentina – um governo burocrático-autoritário, que se caracterizou pela prática, entre outras, de sequestro, assassinato, desaparecimento e ocultação de presos políticos, e até da identidade de filhos de desaparecidos. Ou seja, pela prática de um plano sistemático de terrorismo de Estado.
Ele fez o que tinha de fazer, e fez bem, disse o Promotor-adjunto Luis Moreno Ocampo sobre seu chefe, o Promotor Julio César Strassera. São eles os dois personagens principais desse thriller político: e os atores, duas estrelas, o também infalível Ricardo Darin e o popular Peter Lanzani, cantor e ator, ídolo de matinés. Santiago Mitre também fez o que tinha de fazer, a exemplo de Strassera: “Argentina, 1985” foi construído com sensibilidade e eficiência, combinando detalhes da vida familiar dos promotores com a evolução do julgamento, e o que acontecia na sociedade – enquanto a equipe ultra jovem de Strassera coletava dados de 709 casos de violações de direitos humanos e tentava conectar o modus operandi do aparelho de Estado terrorista. O fluxo da montagem e mise-en-scène materializaram um roteiro ajustado e certeiro, coescrito pelo diretor e por Mariano Llinás, autor do script de outra película bem sucedida sobre o mesmo período, “Azor”.
A esse equilíbrio dramático, pontuado por uma câmera sóbria e elegante – nos enquadramentos, iluminação e nos poucos travellings – o destaque foram as soluções utilizadas no espaço do tribunal, em que muitas vezes foi reproduzido o frame das câmeras de televisão, e mesmo a definição embaçada da imagem da TV. A caracterização de todos os personagens é outro acerto – não apenas os protagonistas, mas o entorno e até mesmo o grupo de militares. E as testemunhas: Adriana Leila Calvo, física e professora universitária, a primeira testemunha a depor, provocou uma virada no público argentino sobre os fatos macabros da repressão. Laura Paredes, a atriz que reviveu a professora, descreveu o ambiente sórdido em que Adriana foi obrigada a dar à luz sua filha: um momento em que a dramatização dos fatos históricos transcende o próprio filme e as palavras adquirem carga inaudita de veracidade.
O julgamento durou cinco meses, e foi um expurgo coletivo de memórias dolorosas e insuportáveis. Tudo começou em 15 de dezembro de 1983, quando o Presidente Raul Alfonsín sancionou, em gesto de rara coragem, o Decreto nº 158/83, que ordenou o julgamento por corte civil dos nove dirigentes militares. Uma verdadeira comoção nacional: trauma que “Argentina, 1985” resgata e cicatriza uma vez mais, se é que é possível falar em sutura diante de tanta carnificina. Um dia, em 1985, um promotor argentino ousou o que ninguém sequer cogitava: julgar militares da ditadura brutal e fazê-lo de acordo com as regras do Direito, dando aos réus as garantias que não foram dadas às suas vítimas.