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Aquele Querido Mês de Agosto

O real no irreal, e vice-versa

Por Paula Hong

Aquele Querido Mês de Agosto

No texto “A Metrópole e a Vida Mental”, o sociólogo alemão Georg Simmel trata de discorrer a respeito das consequências, sobretudo psicológicas, inferidas sobre o indivíduo metropolitano, além de traçar diferenças drásticas de comportamento que ocorre entre os ambientes da vida rural e da cidade grande; este sendo o seu foco no que viria ser classificado como microssociologia ou sociologia da cidade. O que encontra-se em “Aquele Querido Mês de Agosto” é exatamente o contrário.

De ambição distinta ao alemão, aqui o diretor português Miguel Gomes, mesmo sem tal pretensão, acaba por construir um inventário — certamente nada absoluto — acerca da vida rural portuguesa. O estereótipo da pacacidade que permeia o imaginário de muita gente não é sustentado pela obra: a vida ali mostra-se permeada por atividades que explicam não somente as histórias dos vilarejos, mas também a dinâmica cultural peculiar — e ao mesmo tempo homogênea em composição estética — que dá vida a cada um deles.

Entre festas, festivais musicais, desfiles religiosos, visitas às montanhas etc, “Aquele Querido Mês de Agosto” gradualmente tece relação estreita com o espectador quando a câmera deixa de observar as interações sociais a partir de uma distância colocada por planos abertos e passa a fechá-los, inserindo-se no meio ou mais perto dos acontecimentos, ou quando acompanha as personagens pelas estradas de terra, pelos caminhos rochosos e montanhosos. Assim, a grandiosidade rural geográfica mostra-se proporcional ao trabalho da equipe liderada por Gomes em sua pesquisa não por personagens para seu filme, como explica em uma conversa com o produtor, mas por pessoas. Com isso, somos apresentados a elas durante as diversas interações entre os habitantes dos vilarejos e a equipe acolhida por eles.

Neste ponto, o filme cumpre um papel muito bonito de metalinguagem ao incorporar em formato de documentário o processo criativo de pesquisa de personagem para um filme de ficção, filme dentro do filme — ao mesmo tempo em que é revelado o que não se tem muito acesso de uma obra já completa, “Aquele Querido Mês de Agosto” expõe o processo de lapidação do qual somos testemunhas. Com isso, o filme abarca escolhas estéticas e de narrativa que visam suspender a cortina que separa o “real” do “irreal”. A partir dessas escolhas, fica difícil, pelo menos à primeira vista, apontar com precisão o que seria parte documental e parte ficcional dentro do filme.

Tal recurso, no qual é suspendido convenções estéticas que auxiliam a diferenciar um gênero cinematográfico do outro, o diretor é perspicaz na forma com que o utiliza. As primeiras horas de projeção da obra seriam como a extração de informações que ajudam a entender o local escolhido para o cenário do filme a partir da convivência com os moradores locais, e também de materiais para composição da obra ficcional a seguir. No entanto, a escolha consciente da fotografia e da montagem não permite que sejam contrastantes o suficiente para que se faça distinção entre um e outro — a transição do documental para o ficcional ocorre de forma bastante fluida, mas Miguel Gomes confia na capacidade do espectador de discernir os dois gêneros.

A participação direta dos habitantes locais na parte ficcional em “Aquele Querido Mês de Agosto” — o que mostra sucesso na procura para seus personagens — torna o discernimento ainda mais difícil, pois são pessoas que viemos a conhecer durante as horas iniciais do longa. Os atores não profissionais, na interna trama dramática que fala sobre a história da vocalista Tânia (Sónia Bandeira) de uma pequena banda que se apaixona pelo primo músico Hélder (Fábio Oliveira) e cujo amor é impedido por um segredo de seu passado, não escondem a “superficialidade” de suas interpretações, o que contrasta quando os observamos conversar durante as interações cotidianas. Outro aspecto que corrobora com a confusão reside na escolha de não cortar quando os atores “saem” do personagem e exibem emoções que não conversam diretamente com a cena — a exemplificar, quando o choro de Tânia pela partida de seu amado é seguido por risos; o riso já não é mais de Tânia, e sim da atriz. 

Outro aspecto inovador e perspicaz da obra é o recurso narrativo de pista e recompensa; o primeiro, colocado no pedaço documental do filme, acontece quando apresenta-se a confecção de um jornal regional, o qual é responsável pela publicação de correspondências daqueles que saíram do país; o segundo é apresentado no momento ficcional: em dado momento de desenvolvimento da história, uma informação é publicada no mesmo jornal. 

O projeto ambicioso de Miguel Gomes, muito bem justificado tanta pela duração do filme quanto em uma cena que é mostrado o roteiro equivalente a um grosso livro, alcança sucesso na confluência criativa entre o “real” e o “irreal”, no ressurgir de paisagens e pessoas anteriormente apresentadas, na incorporação do cenário cujas dinâmicas regionais trazem proximidade frente a outras camadas narrativas, e também no final engraçado quando a equipe responsável pela gravação do longa discute aspectos referente ao mesmo. O retrato da “microssociologia” não-intencional da vida rural em “Aquele Querido Mês de Agosto” faz jus, ainda hoje, ao fato de ter colecionado premiações e prestígio mundial. Para além disso, é um belíssimo resultado de um dos nomes mais importantes do cinema contemporâneo português.

4 Nota do Crítico 5 1

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