Apolo
Diferentes dimensões
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2025
Já próximo ao fim do filme, um sujeito ignorante e tomado pela estupidez profere contra os protagonistas: “Eu acho melhor você sair [do carro], porque a gente não vai se entender”. Na mesma lógica da pirataria ideológica que cunhou o famoso slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o” — repetido recentemente no Brasil contemporâneo — essa cena simboliza bem parte do pensamento institucionalizado na cultura brasileira, especialmente inflamado pelo antigo ocupante da cadeira presidencial, que oprime e afeta Isis e Lourenzo.
“Apolo”, dirigido por Tainá Müller e Isis Broken, é um documentário que reflete sobre esse tipo de ideologia enraizada no país. Aliás, o Brasil é a nação que mais mata pessoas trans no mundo. O foco principal da obra é contar a história da gestação do casal Isis e Lourenzo, concebida naturalmente durante a pandemia de COVID-19. Sem encontrar um pré-natal adequado e respeitoso, eles precisam ir até São Paulo para conseguir um mínimo de dignidade. Nessa perspectiva, o documentário, que integra a seleção da Première Brasil na 27ª edição do Festival do Rio, consegue mobilizar o espectador para um campo emotivo bastante eficaz, sem precisar forçar sua forma para ser efetivo.
Ainda que em determinados momentos perca parte de seu foco ao propor uma linguagem próxima à de um videoclipe — seja nos enquadramentos, na iluminação ou mesmo na música, refletindo um pouco sobre o ofício do casal, em especial o de Isis — o filme parece hesitante nessa escolha. O recurso é utilizado apenas como uma conveniência estilística, sem se integrar plenamente à estrutura da obra. Esse movimento gera certo incômodo: da mesma forma que há um deslocamento para essas inserções, persiste a sensação de que o filme não acredita verdadeiramente nessa [pseudo] digressão para articular suas ideias formais centrais.
Além disso, é possível notar que, para além da preocupação em apresentar essa história ao público, o projeto faz grande esforço em delimitar suas ambições estéticas e formais, costurando registros realizados pelo casal, depoimentos e a narração em off. Esta última acrescenta uma outra dimensão, mas nunca parece ser plenamente aproveitada pelo filme.
Uma questão particularmente interessante de “Apolo” é a abertura de diálogo com o público, ao expor as contradições e conflitos entre Isis e Lourenzo, como, por exemplo, a questão da amamentação. O tema é debatido entre os protagonistas a partir de perspectivas distintas: Lourenzo entende que não se trata de uma questão de escolha, mas de necessidade; já Isis recusa constantemente recorrer a meios exteriores. Esse tipo de debate, entretanto, não surge de maneira orgânica na estrutura do projeto, já que o filme parece propor uma reflexão entre os protagonistas de forma quase programática. Depois de uma exposição didática do médico, Isis e Lourenzo aparecem de frente para a câmera debatendo, como se fosse um depoimento encenado.
Ao longo de “Apolo”, esse é um sentimento recorrente: o de um projeto que procura ser honesto com os espectadores em seu processo geral, mas que, ao mesmo tempo, se molda para flertar com diferentes propostas estéticas, sem nunca assumir de fato uma diferenciação explícita em relação aos demais documentários que circulam no cinema nacional contemporâneo. Em outras palavras, é um filme que se mantém “em cima do muro” em aspectos determinantes para o seu funcionamento. Não por acaso, há uma disritmia perceptível ao longo da projeção: a transição entre depoimentos, registros pessoais e ambientes controlados não se articula de maneira eficiente e soa mais como um recurso de linguagem programado para dar a impressão de unidade.
Se “Apolo” parece, em alguns momentos, perdido em como sustentar sua progressão até o fim — que é belíssimo —, isso talvez se deva ao fato de não acreditar plenamente na força de sua própria estrutura ao assumir diferentes características formais ao longo da narrativa. O que é uma pena, pois as particularidades de Isis e Lourenzo, sobretudo a gestação carregada por Lourenzo, vão se tornando distantes com o passar do tempo, quase como um recurso ocasional, acionado apenas conforme o documentário se desenrola.
Assim, ainda que o filme nos apresente a dimensão de registro do passado — evidenciada, por exemplo, nas enunciações diretas dirigidas a Apolo —, ele parece se acanhar diante da possibilidade de integrar de forma mais contundente quem são Isis e Lourenzo a essa estrutura, assumindo as particularidades de suas ambições profissionais e pessoais em relação àquilo que está sendo projetado.