Apocalypse Now Redux
O Apocalipse é aqui e agora
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2001
Francis Ford Coppola não esconde suas raízes italianas, temperadas, é claro, com o colosso do capitalismo norte-americano, onde tudo é, ou parece ser, possível. Seus filmes ecoam essa veia operística, no sentido da exasperação sonora, do excesso de emoções – e agradam em cheio, ou geram repulsa, nunca um meio termo. “Apocalypse Now Redux”, lançado em 2001, é mais uma etapa de uma verdadeira odisseia cinematográfica: a primeira versão, “Apocalipse Now”, finalizado em 1979, foi apresentada em Cannes como “work in progress” e ganhou a Palma de Ouro. Em 2001 Coppola e seu montador, Walter Murch, adicionaram 47 minutos e reprocessaram as cores originais, resultando no visual Technicolor dos anos 40 e 50: exuberante, deslumbrante, brilhante, nítido e vívido, com pretos profundos, ricos e verdadeiros, descreveu o crítico Rojer Ebert. E em 2019, celebrando 40 anos, ainda soltou o ““Apocalypse Now: Final Cut”, restaurado com resolução IMAX 4K!
Tem aí, naturalmente, o tino comercial do produtor: mas tem também a fidelidade dos admiradores, e a procura por novas audiências. Como diz Ebert, mais longo ou mais curto, repetido ou não, “Apocalypse Now” é um dos eventos centrais da minha vida como cinéfilo. E não está só: este é daqueles filmes que condensam a experiência histórica de uma tal maneira que as categorias habituais de análise – fatos, geografia, biografias – se diluem numa massa espiritual (o oxímoro é proposital, o espírito vira matéria, e a matéria, espírito). “Apocalypse Now Redux”, dando continuidade à produção de 1979, inscreve-se em um quadro particular, tendo operado um corte significativo dentro da sua especificidade, a tradição dos filmes de guerra: ou seja, o que antes permanecia recalcado, o absurdo e a completa ausência de sentido das guerras, vem à tona impactante e de forma espetacular.
A guerra no caso é a do Vietnã, inserida no contexto da Guerra Fria – e talvez o último estertor do chamado imperialismo dos EUA na sua versão “patriótica”. Foi o derradeiro conflito em que os soldados eram convocados, nos diversos estratos da sociedade, para combater em nome da liberdade. Hoje, os combatentes são profissionais, o serviço militar não é mais obrigatório – basta um registro online. Os soldados que acompanham o capitão Willard (Martin Sheen) – na lancha que sobe o rio em direção ao Camboja, para assassinar o Coronel Kurtz (Marlon Brando), oficial renegado das Forças Especiais acusado de massacres e considerado louco – estavam ali cumprindo um dever.
O limite entre a razão e a loucura: tal era a meta e a missão do capitão-herói; o além era o território da violência sem limites, do não-sentido. Urgia destruí-lo. Mas para isso era preciso encontrar alguém obstinado e resistente, capaz de manter a lucidez – em plena loucura – até chegar ao ponto central da questão: onde está o sentido?
John Milius, corroteirista, diz que começou a escrever a história ouvindo Wagner e The Doors. “Apocalypse Now Redux” é isso, ópera e rock: decibéis no limite. Mas é também literatura: Coppola foi buscar no fabuloso relato de Joseph Conrad, “Coração das Trevas”, a alegoria que precisava para construir o percurso geométrico do mergulho entre a costa oceânica e o âmago da insanidade. No livro de Conrad, é o desvario colonialista europeu na África: no filme, é a demência da expansão do capital no século 20. Na porta de entrada, na praia vietnamita, o coronel Kilgore (Robert Duvall) se diverte vendo soldados surfando enquanto requisita bombas napalm para clarear o terreno.
Uma montagem de círculos concêntricos, irradiados a partir do coração da dúvida, e uma trajetória épica que atravessa transversalmente as linhas – eis o cenário para Willard e seus comandados. O absurdo surge exatamente no instante em que a vitória é, também, ausência de sentido. O desejo de eliminar o alvo é a constatação do absurdo da guerra, do absurdo da representação da guerra. O combate final, travado numa atmosfera mitológica, um rodízio de deuses, é a celebração do sacrifício, ou ainda: é a consciência da morte.
Mitologias, afinal, é também o que se criou em torno do filme ao longo dos anos – inspiradas por episódios concretos, o tornado na Filipinas (onde foi rodado), o ator (Sheen) que sofre um infarto no meio das filmagens, uma estrela que cobra uma fortuna (Brando) e ameaça abandonar o set. A mulher de Coppola – falecida ano passado, para quem ele dedicou “Megalopolis” – editou um fantástico making of, “Coração das Trevas: o Apocalypse de um cineasta“. Lá pelas tantas, confessa Coppola:
Meu filme não é sobre o Vietnã… meu filme é o Vietnã… a maneira como fizemos foi muito parecida com a forma como os americanos estavam no Vietnã: estávamos na selva, éramos muitos, tínhamos acesso a muito dinheiro e equipamentos e, pouco a pouco, enlouquecemos.