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Aos Nossos Filhos

A calculadora da opressão

Por Giulia Dela Pace

Festival do Rio 2019

Aos Nossos Filhos

“Aos nossos filhos” de Maria de Medeiros é um filme complicado de ver e escrever sobre. Não porque é um filme indigesto pelo enredo, mas porque é uma obra confusa e incompleta.

Vera, interpretada por Marieta Severo, é uma personagem ex-guerrilheira vítima de torturas enquanto grávida. Uma mãe divorciada que carrega traumas tanto da Ditadura Militar quanto de sua primeira experiência maternal, com seu primeiro filho nascido e desaparecido dentro do DOPS. Após seu divórcio, ela se dedica a uma ONG para acolher e encontrar novas famílias para crianças órfãs soropositivas. Uma personagem que sem dúvida representa todas as mulheres que passaram por duros momentos nesse sombrio período da história nacional e que ainda conseguem ser tenazes ao defender aquilo que acreditam.

Enquanto Tânia, personagem de Laura Castro – autora da peça –, é uma advogada ambiciosa que vive com sua esposa Vanessa (Marta Nobrega). Ambas querem ter um bebê, mas Tânia, além de forçar Vanessa a diversos procedimentos de inseminação contra a vontade, fica obcecada com a ideia de ser mãe, especialmente por ter tido uma relação complicada com a sua mãe ao longo da vida, e a sua jornada angustiante acaba por se cruzar com a de sua mãe.

O filme traz inúmeros problemas à tona com o plano de fundo dicotômico entre uma geração de mulheres politicamente ativas traumatizadas pela ditadura militar – que lembra o espectador o tempo inteiro das sequelas desse período – e o mundo contemporâneo com seus encorpados problemas, uma realidade onde pessoas LGBTQIA+ declaradas é normal, mas não necessariamente aceita ou visibilizadas por todos.

“Aos Nossos Filhos” é mais uma adaptação do teatro para o cinema onde as possibilidades de moldagem e esquadrinhamento da narrativa tem tudo para acontecer de forma brilhante e sensível, pois a linguagem cinematográfica permite certa inventividade para dizer muito mostrando pouco: apesar de não ter sido esse o caso. Muito porque o longa abre inúmeras paredes e não conclui nenhum quarto. O que é compreensível até certo ponto, tendo em vista a “prática” de uma metodologia feminista interseccional trazida pelo roteiro e direção, o que consequentemente justificaria a não conclusão de assuntos por questões enormemente complexas. Mas mesmo a interseccionalidade não se concretiza tão bem, infelizmente, pois muitos elementos da narrativa e algumas falas acabam soando racistas, homofóbicas e principalmente classistas à lá feminismo branco liberal.

O filme teve boas intenções e de certa forma homenageiam mulheres como Denise Crispim – importante militante política brasileira que sofreu como mãe, parceira, irmã e filha durante a Ditadura Militar – ao trazê-la para a produção, além retratar de forma incessante os traumas Vera e sua firmeza com a ONG, bem como as relações ambíguas e a hipocrisia de um progressismo – de ambas as gerações – que se esquece das palavras de Audre Lorde: “Há um timbre de voz que vem de não ser ouvido e saber que você não está sendo ouvido notado apenas por outros não ouvidos pelo mesmo motivo […]” (Trecho de “Echoes”, de Audre Lorde). (falar sobre só terem mulheres brancas e virar uma narrativa elitista branca que vê os Outros como Outros)

E é, o problema retratado pelo filme, um dos maiores problemas do filme. Há quase uma corrida de exposições para mostrar quem é mais oprimido, quando não deveria ser essa a “conversa”. É justamente o sistema de opressões multifacetado num país latino-americano que viveu um período de autoritarismo ditatorial a questão que funcionaria como cola para todo o enredo, mas é malfeito. O filme por si só reforça as fontes dos preconceitos e violências que ele mesmo tenta combater. Talvez, com mais tempo de gaveta essa adequação fílmica pudesse ter sido mais bem sucedida, pois a cautela deixaria as abordagens de minorias mais claras e efetivas, pois são todos temas delicados e muito difíceis de se tratar em apenas uma hora e alguns minutos.

Especialmente porque as camadas interseccionais do longa-metragem de qualquer forma seriam uma grande salada de frutas com realidades e momentos difíceis de engolir. E evidentemente existe no filme uma certa “corrida” de quem tem menos privilégios, mas a produção não se propõe em desenvolver em algum momento essa questão, apenas se preocupa com a fala e olhar que parte de um lugar de vivência com certos privilégios. Há um certo sintoma “netflixiano” de repetidamente expor determinados problemas de forma rasa e simplória, pois parte de um lugar de não conhecimento daquela realidade. É uma doença “lacradora” que faz tudo não passar de um mísero espelho d’água e que contamina a obra de Maria de Medeiros, uma obra que tem substância muito mais profunda e embaraçada do que fez parecer.

Muito pelo próprio roteiro, que tem diálogos baratos, francos e expositivos demais. O espectador é tão bacana, mas também não é nenhum banana! Mas o problema do filme como filme não perpassa apenas o roteiro, mas a direção de forma geral: cortes que não contribuem para a narrativa, planos de diálogos que a fotografia poderia ter revisado manuais básicos de cinema, desleixo da direção durante a produção; montagem e direção de atores. Aliás, uma direção de atores que poderia ter ficado para a novela das 7.

“Aos Nossos Filhos” é um dos infelizes resultados da Globo Filmes que tentou chegar no ponto e nunca conseguiu. Quiçá, com um pouco mais de “geladeira” para fazer uma adaptação do teatro para o cinema e um pouco mais de prudência ao tratar de vivências e minorias que não são a daqueles(as) que “falam” o longa pudesse ter sido mais salutável para todos(as) aqueles(as) que se identificam dentro da história do filme. E como resultado, tornaria a obra menos perigosa, considerando seu poder como produto comunicacional.

2 Nota do Crítico 5 1

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