Mostra Sessões Especiais Mais uma Edicao

Anselm: O Barulho do Tempo

Fuga sobre a Morte

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2023; Mostra de São Paulo 2023

Anselm: O Barulho do Tempo

na casa mora um homem teus cabelos de ouro Margarete

ele atiça seus mastins contra nós dá-nos uma cova no ar

ele brinca com as serpentes e sonha a morte é uma mestra

[d’ Alemanha

teus cabelos de ouro Margarete

teus cabelos de cinza Sulamita

(Paul Celan, tradução Claudia Cavalcanti)

Anselm: O Barulho do Tempo” é um documentário em 3D sobre o pintor e escultor alemão Anselm Kiefer, nascido em 8 de março de 1945 – basta imaginar o cenário das cidades na Alemanha nessa época, ruínas sobre ruínas, para se ter uma ideia do Zeitgast, o espírito do tempo, que acolheu o jovem Anselm no mundo dos vivos. E também o realizador, Wim Wenders: nasceu em agosto do mesmo ano. Adolf Hitler, nessa altura da queda abissal que mergulhou nos meses finais da 2ª Guerra Mundial, ordenou de seu bunker a destruição de pontes, fábricas e estradas de seu país – tudo o que poderia servir aos invasores, de leste e oeste, já que os alemães, raciocinava, falharam miseravelmente e não mereciam sobreviver (a pulsão suicida só não vingou pela ação de lúcidos – se é que cabe a palavra – como o arquiteto Albert Speer, Ministro da Indústria de Armamentos).

A loucura de Hitler é quase um projeto estético, um romantismo patológico levado às últimas consequências. A obra de Anselm Kiefer, mal resumindo, construiu-se em cima dessa falha tectônica da alma alemã: seu projeto romântico pode ser definido, como dizem os filósofos, pela crença de que o artista pode mediar entre o criativo e o divino, entre a terra e o céu.

Não é pouca coisa. A monumentalidade dos trabalhos de Kiefer, realçada pela tridimensionalidade da imagem, desconcerta à primeira vista o olhar desarmado do espectador, que relaciona e compara escalas como desdobramentos previsíveis. Uma tela dentro do ateliê é percebida, em princípio, na escala humana: um retângulo que pode habitar a parede da sala de visitas. No filme, logo em seguida, uma figura minúscula sai pedalando por detrás da tela, que tem uma escala várias vezes maior que o ciclista – e não é outro senão o artista, com seus setenta e poucos anos, circulando no seu vasto armazém. Teria ele saído de uma de suas pinturas? Saído de uma “ferida aberta”, que emana do espaço pictórico ? – como diz Kiefer: A arte não pode viver de si mesma. Tem que recorrer a um conhecimento mais amplo. Precisa suportar as cicatrizes do mundo, as feridas da vida.

Anselm: O Barulho do Tempo” retraça o percurso de Anselm Kiefer, começando com sua relação com o mentor Joseph Beuys, um dos maiores mitômanos do século 20 – e artista genial. Segundo o próprio Beuys, seu chamado artístico aconteceu quando o Junker 87, de cuja equipe fazia parte, foi atingido pelos russos e ele caiu ferido, com uma bala na cabeça. Foi na Crimeia, no meio de uma tempestade de neve – onde foi encontrado por um clã de nômades tártaros, que o cobriram com gordura, para ajudar a regenerar o calor, e o embrulharam com feltro, para conservar esse calor (acredite, se quiser). Mas funcionou como arte: feltro e gordura viraram materiais, digamos, de trabalhos artísticos. Kiefer saiu pela Alemanha produzindo selfies (em planos gerais) com os braços esticados acima do crânio, a famosa saudação Sieg Heil (“Salve a Vitória”), atualizada no período nazista para o famigerado Heil Hitler! Os cenários das fotos eram locais “esquecidos” do nazismo: uma amnésia coletiva exposta como recreação. Nas entrevistas do documentário, atuais e antigas, Kiefer parece convicto que é capaz de redimir o passado criminoso da sua pátria e trazer o tema para o domínio da Arte.

Wim Wenders, por sua vez, parece comprazer-se em registrar a megalomania crescente do artista: as telas, cada vez mais gigantescas, são compostos de vários processos e materiais, incluindo emulsão, óleo, acrílico, goma-laca, folha de ouro, folha de cobre, sedimentos, metal, tecido, madeira, cabelo, corda, terracota, cinzas, carrinhos de compras, vestidos e roupas. Maçaricos substituem pincéis: gruas catapultam o gesto do pintor para o quarto andar. Por exemplo: Für Paul Celan (Para Paul Celan, 2021), que tem mais de 3,6 x 5,5 metros, retrata a decadente e não utilizada arquibancada do Zeppelin Field, projetada por Speer, nessa época somente arquiteto de Hitler. As imagens das obras visam a estupefação da audiência. “Anselm: O Barulho do Tempo” puxa o freio da hipnose 3D e exibe cenas familiares de Martin Heidegger, o filósofo que Celan visitou depois da guerra – a conversa entre eles deve estar depositada em algum templo dedicado a Palas Atenea, a deusa das Artes.

O cinema já foi vítima de vários crimes em nome da “arte imersiva”, em particular depois do 3D contemporâneo. O filme de Wenders, com seu foco afiado e uso da estereoscopia – técnica usada para se obter efeito tridimensional, através de duas imagens obtidas em pontos diferentes – quer deslizar para a textura física das obras. É ver para crer.

3 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta