Ana. Sem Título
A passos lentos... História
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de São Paulo 2020
Quem acompanha minhas críticas aqui no Vertentes há alguns anos, sabe que fiz críticas constantes ao trabalho de Lucia Murat, sempre falando acerca das perspectivas políticas de suas obras e como suas manifestações representavam uma classe, ainda que ideologicamente progressista, burguesa. “Ana. Sem Título” não é diferente, ainda se posiciona como tal, mas consegue alguns feitos interessantes.
Faço essa introdução para dizer que sigo reconhecendo tendências estéticas e de pensamento político que a discordância é realçada, porém há questões em seu novo longa que atravessam outras particularidades. O projeto é baseado em tom híbrido entre o documentário e a ficção, tentando emular traços específicos de ambos e se aproximando de um processo diferente. Isso ocorre com parte do ímpeto de reviver uma história de maneira ficcional. Não como simulação, mas recompondo a partir da própria ficção. Neste campo, a forma com que a diretora faz isso não é nova, nem na abordagem, nem na linguagem, pois acaba se rendendo à alguns maneirismos político-cinematográficos contemporâneo, não à toa seu fim é completamente previsível e o corte é final é desenhado para acontecer. E parte do seu encaminhamento político segue essa mesma linha, uma tendência contemporânea, onde o materialismo é um ponto segundo dentro de uma perspectiva de representação (algo que falei nas últimas críticas).
E nessas bases seria possível fazer o exercício fácil, quiçá desvirtuado, de apontar como uma vulgaridade privada. Mas é necessário entender o contexto em que suas obras se inserem, assim como suas temáticas. A repressão é um assunto recorrente em seus filmes, a Mulher uma protagonista frequente da mesma maneira. “Ana. Sem Título” me parece um passo lógico para sua carreira, mas ousado, tendo em vista seus últimos trabalhos. Aqui, Murat se arrisca na dualidade formal, mirando uma possível dialética no discurso, acaba transformando parte dele em um axioma convencional em torno da realidade. É uma pena, pois as criações aqui são interessantes o suficiente para fomentar o debate a partir de um materialismo mais denso, radical, não diluído nas representações que parte do setor ideológico se tornou. E no caso de Murat, esse pensamento é levado para um campo distante da virtualidade dessas representações, já que a diretora está constantemente retomando um processo histórico, seja por uma discussão totalizante ou mesmo debate em torno de suas nostalgias de luta política.
Se aqui seus esforços se concentram em costurar duas “realidades” na montagem e conciliar essas duas frentes na estrutura, parte disso se perde na própria materialidade das performances, que acabam entregando demais tanto o tom ficcional, como a dialética presente em todos os âmbitos das Revoluções ali citadas. Logo, vira um exercício de memória, representação, ficcional. E é por onde caminham parte das produções cinematográficas brasileiras, mas Murat tenta contornar de maneira mais radical, ainda que seguindo as tendências, por isso o “ousado”. Pois é uma via de mão dupla que a diretora enfrenta aqui. Por fim, o que se vê é uma linguagem mais sintética da diretora, buscando uma articulação dessa proposta documental (ainda que explicitamente ficcional), com os graus de exposição do didatismo histórico e uma verve emocional em torno de suas pautas políticas.
Essa exposição didática, é feita de forma interessante pois digladia com esse imaginário de representações que o debate político vem sofrendo, mas acaba esbarrando em nortes específicos de como a produção cinematográfica brasileira vem tentando lidar com a realidade. É uma espécie de “outro lado” da fugacidade realista que estamos vendo. Aqui, a criação não é fantástica, é mais materialista e crua, direta e sensível. É um rosto que a luta Revolucionária incorporou há mais de uma década e que vem tentando reatar com parte do espírito anterior. Segue falhando por falta teórica na discussão.
“Ana. Sem Título” é uma surpresa na Mostra de São Paulo e também se destaca pelos posicionamentos históricos que apresenta, além da própria História, mas acaba cedendo à alguns padrões contemporâneos, enfrentando outros e batendo na tecla constante de graus de representação, onde a classe acaba se sobressaindo demais nos olhares objetivos do filme, o que inviabiliza parte da dialética no processo materialista que poderíamos vir a expor e debater.