Amanhecer
Os desejos do fim
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de SP 2021
O vulcanismo do apocalipse e o rompimento social com a sanidade institucional “Amanhecer” é uma obra que transita entre a intensidade extrema e a inércia de sua estranheza. O filme de Dalibor Matanić é como um constante delírio de explicações escassas, entre a febril relação com os espaços e uma realidade modificada na distopia. A família protagonista que passa a ser atormentada pela divisão política e religiosa da sociedade torna-se palco de uma série de mutações e dúvidas no frenesi das explosões sentimentais.
Funcionando de um jeito muito particular, essa narrativa é contada aos poucos, com paciência e dando pistas de como a estrutura social funciona nesse mundo onde a fé vai dando lugar à necessidade de uma resposta violenta às agressões constantes que ferem a moral dogmática do grupo. Existem diversos elementos que vão tumultuando a calmaria, da tragédia ao vizinho ensandecido, a questão metafísica de “Amanhecer” torna-se cada vez mais turva e decisiva para a progressão do drama, onde o que não se revela por completo é a premonição de um enfrentamento direto com os medos. Conforme avançamos na projeção, algumas decisões dos personagens ficam ainda mais confusas, desde a troca de lugares aos papéis invertidos de imposições e representações. São essas dialéticas internas da trama que criam uma atmosfera de caos e constante volatilidade. Algumas cenas procuram expor isso em uma diretriz mais imediatista, como as explosões do vizinho, um personagem estranho, enigmático e violento que possui algumas sequências quase delirantes nesse mar de ódio.
Parte dos símbolos utilizados em “Amanhecer” parecem mais rasos que sua pretensão, sendo um chamariz primordial, enquanto se dissolve na exposição elementar. A cena final, onde a resolução é dada, é um exemplo claro de como esse universo despe a normalidade à caótica problemática das manifestações do espírito, na contramão de uma fé materialista, onde as necessidades são objetos desse outro lugar, a equação aqui é invertida. Está certo que se distancia de “Mad Max”, onde a insanidade ganha forma para além do compreensível, mas o filme de Matanić consegue oferecer explicações mais cruas, diretas, carnais. Explicita o desejo na fotografia que revela e esconde em proporções similares, retrata o sonho como essa questão profética, parte de um enfrentamento necessário para a resolução dos problemas e mantém o delírio formal até os últimos minutos. Aqui, há um paradoxo interno que deixa as coisas ainda mais inflamáveis, pois existe um rigor bastante particular na construção estética, quase cerebral, da encenação que mantém as coisas fixas nessa desordem nada pragmática. O curioso é que as explosões de movimentos e violências, não expurgam essa constante inércia, pelo contrário, entra em um jogo de seduções da imagem que fetichiza a barbaridade ao ponto de criar um julgamento externo para as situações ali expostas.
O recurso é interessante pois flexibiliza a mise-en-scène em termos distintos, a montagem faz o trabalho sujo, a fotografia glorifica e os atores possuem a liberdade de serem cada vez menos humanos fisicamente, deixando apenas suas emoções reservadas aos olhares ou a face que se divide entre o medo e o ódio. Nessas relações frágeis que são colocadas a prova com uma constância que passa a perturbar os personagens, “Amanhecer” parece mais sóbrio que pretendia e menos brutal que almejava, fazendo com que essa dicotomia interna funciona de maneira ambígua, sendo capaz de construir uma narrativa que está sempre à beira do colapso mas é cadenciada ao ponto de reconhecer suas fragilidades e não permitir que estas estejam acima desse frenesi. A montagem, a fotografia e a direção de Matanić são capazes de criar alguns momentos quase perturbadores, mas nunca parece ir além de uma estranheza pragmática e imediata, que não sobrevive nos últimos vinte minutos, onde tudo se dissolve nas representações mais idílicas.