Alma Negra, do Quilombo ao Baile
Cultura e apresentação
Por Vitor Velloso
Assistido durante o Festival do Rio 2024
Percorrendo a produção musical afro-brasileira através da soul music, “Alma Negra, do Quilombo ao Baile”, dirigido por Flavio Frederico, é uma bela forma de abordagem histórica e social, que compreende como fazer uma homenagem sem perder o foco nos contextos e momentos históricos de seu objeto. Não por acaso, a estrutura do documentário segue uma lógica de introdução e apresentação de seus personagens centrais, os artistas e as bandas que compõe esse grande quadro histórico apresentado pelo filme, com todos seus desdobramentos, e motivações, políticas e sociais envolvidas nesse movimento.
Por um lado, essa estratégia funciona para separar os artistas em seus respectivos contextos, por outro, torna-se uma muleta de transição, um dispositivo fácil para criar uma mudança nas etapas de construção, fragilizando o filme em sua totalidade. Assim, o projeto passa a basear até sua articulação de progressão histórica através desse dispositivo, que apesar de ser interessante no início, torna-se repetitivo e acaba atrapalhando a imersão nessa intensa projeção, pois interrompe um fluxo de construção previamente estabelecido por determinado personagem e seus ricos depoimentos. Aliás, esse é um dos grandes méritos do filme, sua capacidade de obter uma síntese dessa história através das entrevistas, que o espectador não tem acesso às perguntas feitas, mas a fala de todas as personagens têm uma capacidade de contextualização que realmente estabelece o espectador. Além disso, a grande quantidade de material de arquivo presente na película, funciona como um solo que estabelece parte da nossa relação com essas narrativas, pois além de nos apresentar as imagens e vídeos, possui uma montagem que é capaz de dinamizar e criar um ritmo distinto de uma mera exposição.
“Alma Negra, do Quilombo ao Baile” acaba sendo um projeto tão preso em seus personagens, que decide contar sua história através deles, seja por escolha ou por respeito. De toda forma, é louvável que os protagonistas tenham a palavra no momento de celebrar essas memórias, sem que seja uma percepção de terceiros sobre a importância do movimento etc. No momento de tocar no legado que permanece, os próprios protagonistas também oferecem suas percepções, contribuindo para a manutenção da memória. De toda forma, enquanto homenagem e espécie de compêndio dos artistas, em alguma medida de forma catalográfica, o documentário se constroi de forma rítmica, apresentando as influências culturais e intelectuais que estavam em jogo no momento de consolidação do movimento. As citações de figuras como Lélia González, Abdias do Nascimento e outros intelectuais contemporâneos à época, demonstram parte dos debates que estavam inseridos nesse contexto, complexificando esse campo cultural, em sua produção, manifestação e resistência política e social.
Apesar da estrutura catalográfica ser particularmente limitante para incitar as discussões e debates, ela tem uma função didática que funciona muito bem para apresentar as referências para o espectador, introduzindo o público a uma série de nomes e histórias que podem ser desconhecidas para determinadas experiências particulares. Além disso, o compêndio segue uma estrutura lógica e temporal, impedindo que haja uma perda de sentido na progressão, mesmo que algumas transições sejam frágeis, por uma falta de ligação direta, criando algumas interrupções abruptas.
“Alma Negra, do Quilombo ao Baile” é ambicioso em procurar relacionar contextos históricos tão diferentes para encontrar suas similaridades, formas de resistência e orgulho. Nesse caminho, algumas escolhas acabam limitando o processo de ampliar as capacidades de debate, mas reforça um compromisso com a apresentação e didatismo. Assim, entre tantos nomes e figuras importantes para compreender o movimento e o campo cultural da época e o legado que permanece, compilar pode parecer uma escolha razoável, mas acaba se revelando um dispositivo relativamente engessado para tanta ambição.